Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo I | Page 5

Alexandre Herculano
depois da victoria n?o o abonava. Havia quem fizesse sentir isso, quem até desmesuradamente o exagerasse. Exageravam-no, sobretudo, os vencidos. Emquanto durou o ruido das armas, os lamentos destes n?o se ouviam; mas quando o estrondo cessou, e asserenaram os terrores, os queixumes foram-se convertendo em invectivas colericas, e tambem em accusa??es n?o raro ou justificadas ou plausiveis. A liberdade da palavra falada e escripta tinha-se conquistado n?o só contra os defensores da censura e do absolutismo, mas tambem para elles. Nas expans?es da sua dor e do seu despeito, no pouco ou muito que essas expans?es contribuiram para o descredito dos homens que mais cordialmente odiavam, tiveram os vencidos occasi?o de reconhecer que a liberdade humana, ruim em these, sobretudo para a salva??o eterna, póde, em tal ou tal circumstancia, n?o ser absolutamente má.
Os depositarios do poder executivo tinham, porém, adversarios mais perigosos. No gremio liberal houvera homens, alguns de dotes n?o vulgares, que, ou por despeitos pessoaes, ou por falta de animo para affrontarem os trabalhos e riscos de commettimento desigual, ou finalmente por obstaculos independentes do seu alvedrio, tinham ficado extranhos á guerra civil, sumidos em escondrijos na propria patria, ou acoutados na terra estrangeira para escaparem aos impetos da tyrannia. Desaccordos nascidos no exilio entre alguns destes ultimos e os homens de valia de quem o Duque de Bragan?a se rodeiara quando emprehendia a guerra da restaura??o, n?o tinham feito sen?o medrar e azedar-se progressivamente por diversas causas. Estes desaccordos, que pareciam pouco importantes emquanto durou a contenda, apenas essa epocha tormentosa cessou, tornaram-se mais graves, porque os individuos que se haviam conservado como extranhos á lucta em que se lhes conquistava uma patria, tinham amigos e parciaes numerosos entre os que pelejavam e venciam. Constituido o regimen parlamentar, as malevolencias, mais ou menos latentes, converteram-se em hostilidade acerba. Esta hostilidade podia ter, e tinha em parte, motivos maus; mas, contida no ambito constitucional, era, até certo ponto, bem fundada e util.
Os estadistas, que, cercados durante annos de espantosas difíiculdades, souberam superá-las exercendo o poder, eram indubitavelmente homens de alta esphera. Podia reputar-se problematica a virtude de um ou de outro: a capacidade e a firmeza n?o podiam disputar-se a nenhum delles. Affeitos a reger o paiz com o vigor de uma dictadura, inevitavel emquanto durara a guerra, e com as formulas militares, custava-lhes esquecerem-se dos habitos dessa epocha, confundindo mais de uma vez, na praxe da administra??o, as duas idéas oppostas, de paiz libertado e de paiz conquistado. Por outra parte, os que muito haviam padecido queriam gosar muito, e o reino, devorado por discordias intestinas superiores ás proprias for?as e exhausto de recursos, via comprometter o futuro da riqueza publica por larguezas, n?o só desacertadas, mas tambem juridicamente injustificaveis. Homens que teriam legado á posteridade nomes gloriosos e sem mancha, e que, mais modestos nas suas ambi??es materiaes, seriam vultos heroicos na historia, pagaram-se como condottieri mercenarios, ao passo que outros, depondo as armas e voltando á vida civil, exigiam ser revestidos de cargos publicos para exercer os quaes lhes faltavam todos os predicados; homens cujo unico titulo era terem combatido com maior ou menor denodo nas fileiras liberaes ou haverem padecido nas masmorras os tratos da tyrannia. A grande, a séria, a profunda revolu??o que se fizera no meio do estrondo das armas levara de envolta com os dizimos, com os bens da cor?a, com as capitanias-mores, com toda a farragem do absolutismo, os antigos officios, moeda que por seculos servira para pagar algumas vezes meritos reaes, muitas mais vezes, porém, prostitui??es e villanias. Mas as func??es publicas, os empregos vieram supprir essa moeda, tomando n?o raramente cunho analogo, e distribuindo-se com a mesma justi?a e cordura. Estes e outros erros e abusos que o governo commettera, ora por impulso proprio, ora para satisfazer as influencias preponderantes com que o poder tem de transigir, necessidade fatal do regimen parlamentar, e um dos maiores defeitos da sua indole ainda t?o imperfeita, engrossaram rapidamente, com os muitos desgostosos e indignados, a parcialidade que na origem representava antes malevolencias pessoaes do que antinomia de doutrinas.
Foi por isso que a revolta de septembro, se n?o achou eccho pelo paiz, também n?o achou nelle repugnancia manifesta, e p?de na capital constituir-se e tomar em poucos dias a importancia que n?o tinha em si. A consciencia da propria impopularidade, o inesperado dos acontecimentos, talvez, até o tedio e cansa?o de aggress?es continuas, haviam feito titubeiar os membros do governo decahido, tornando-os inhabeis para séria resistencia, emquanto os seus adversarios aproveitavam o successo com a energia de inimizades encanecidas e de ambi??es até ahi n?o satisfeitas.
Os homens que entenderam ser do seu interesse ou do interesse do paiz fazer surgir daquelle estado anormal uma situa??o regular viram que a primeira necessidade era elevar o motim á altura de uma revolu??o.
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