espiritos.
Hoje a exagera??o sincera do insulto, a invectiva hyperbolica, inspirada, n?o pelo calculo, mas pelas irrita??es da consciencia, mal se comprehende. Neste crepusculo da vida publica, t?o favoravel ás prostitui??es do cidad?o, como o crepusculo do dia ás prostitui??es da mulher; nesta epocha de extrema agonia, iniciada pela proclama??o dos interesses materiaes acima de tudo, fórmula decente de sanctificar o egoismo, porque para cada individuo o interesse material alheio é apenas um interesse de ordem moral; agora que a boa educa??o dos homens novos mudou a linguagem politica, e vai arrojando para os archaismos historicos a lucta face a face, a punhalada pelos peitos; agora que a strychnina da allus?o calumniosa e amena, o enredo tortuoso, a trai??o ridente v?o expulsando da arena das fac??es as objurgatorias, rudes na substancia e na fórma, a Voz do Propheta é, sem duvida, uma composi??o agreste e brutal. Inutil como exemplo e modelo, servirá todavia como amostra do que eram as malevolencias da gera??o cujos raros representantes, hoje quasi estrangeiros no seu paiz, n?o tardar?o a ir esconder no tumulo as ultimas grosserias que deturpam a suavidade dos costumes e as tolerancias de toda a especie dos cultos filhos de barbaros.
Os homens que em 1837 se aggrediam violentamente na imprensa e no campo tinham, de feito, habitos e sentir diversos dos actuaes. As febres politicas eram ent?o ardentes, indomaveis, porque derivavam de cren?as. Naquella epocha havia, como houve sempre, belforinheiros da politica; mas constituiam a excep??o. O geral era gente baptisada com fogo e com sangue nas duas religi?es inimigas do absolutismo e do liberalismo. Chamo-lhes religi?es, porque o eram. A guerra civil, que terminara em 1834, tivera muitos dos caracteres das antigas cruzadas. Sobretudo nos primeiros impetos della, haviam-se practicado actos de abnega??o, de constancia, de valor e de soffrimento sobrehumanos, ao passo que se perpetravam outros de bruteza e ferocidade inauditas. A maior parte delles, factos obscuros, individuaes, reiterados cada dia, cada hora daquelle prolongado paroxismo de grandiosa barbaria, n?o os registou, n?o os registará nunca a historia, talvez. E todavia, é isso que explica a proceridade da estatura moral dos homens daquelle tempo, estatura a que n?o chegaram, nem provavelmente chegar?o as gera??es subsequentes. Sem paix?es violentas e exclusivas, n?o ha as energias que assombram. Ent?o a existencia e os commodos e gosos della eram t?o casuaes e transitorios, as priva??es e dores de t?o completa vulgaridade, que dar a vida ou tirá-la aos outros pouco mais significavam do que ac??es indifferentes. Diante do fanatismo politico, a reflex?o que discrimina o bom do mau, o justo do injusto, quasi que era puerilidade. Podia ceder-se, e n?o raro cedia-se, a instinctos generosos para com o adversario: a justi?a em apreciá-lo moralmente, ou em respeitar-lhe os direitos, isso é que se tornara difficil.
Taes eram os homens que, depois de esmagarem a monarchia absoluta, vinham, emfim, a aggredir-se mutuamente na imprensa e no campo. A revolta, desmembrando o partido liberal, constituia dous partidos violentos, daquella violencia a que estavam affeitos e cujo embate devia produzir males profundos e em parte irremediaveis.
Esta scis?o, logo depois da victoria, era difficil de explicar fóra de Portugal. Aqui entendia-se, embora derivasse de um facto injustificavel. A harmonia de opini?es, a unidade de cren?as e intuitos dos vencedores dissipava-se, porque realmente n?o existia sen?o nas suas rela??es negativas. Negava-se, combatia-se o passado. Era no que havia accordo. As apparencias de uni?o e conformidade creara-as a grandeza do perigo. A phalange é e será sempre o mais poderoso instrumento de guerra, moral e materialmente. Embora, porém, houvesse diversidade de doutrinas, o que havia mais era contraposi??o de interesses. Para as primeiras se manifestarem e tenderem ao predominio bastavam a liberdade da palavra oral e escripta, e a discuss?o parlamentar. Aos segundos, dada a impetuosidade e impaciencia da ambi??o humana, sobretudo nas ra?as latinas, n?o bastava nenhuma liberdade. Recorreu-se ao illegal, ao tumultuario, e a revolta de septembro de 1836 appareceu.
Quem a preparou e fez surgir? N?o sei. Ostensivamente, os seus auctores foram a plebe de Lisboa e alguns soldados que se negaram a dispersar os amotinados. Os individuos que, depois de consummado o facto, tomaram nas m?os as redeas do governo, recusaram para si a paternidade daquelle féto político. Creio que, affirmando-se innocentes, falavam verdade; sen?o todos, ao menos alguns. Fugir, porém, á responsabilidade de uma situa??o, que aliás se busca fortalecer e constituir, é indirectamente condemná-la; é dizer n?o com a consciencia; sim com os labios. A senten?a daquelle motim lavravam-na os mesmos que forcejavam por convertê-lo n'uma cousa grave. Por outra parte, o que me parece evidente é que os governos que cahem como cahiu o que existia, embora simulem de vivos, est?o já moralmente mortos.
E o governo de ent?o estava-o. Por grandes que os seus servi?os ao paiz houvessem sido durante a lucta, o seu proceder
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