Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo I | Page 3

Alexandre Herculano
distribui-los precisamente conforme a sua indole. Adoptei um termo medio, que me facilitasse ao mesmo tempo o trabalho de revis?o, e me habilitasse para ir successivamente publicando qualquer volume á medida que o coordenasse. N'uma grande variedade de assumptos, o espirito n?o se amoldaria a reconsiderá-los nem pela ordem das datas, nem pela identidade da materia. A intelligencia é caprichosa, e duplicadamente caprichosa na sua decadencia. Attendendo em geral á natureza dos diversos opusculos, entendi que podiam dividir-se em tres categorias--Quest?es publicas--Estudos historicos--Litteratura.--Estas tres categorias constituir?o tres series separadas, servindo-lhes apenas de nexo o serem uma collec??o geral das minhas opini?es, quer em quest?es litterarias ou historicas, quer em quest?es sociaes. Assim, um volume seguir-se-ha a outro da mesma ou de diversa serie sem inconveniente para a publica??o, e sem se tornar necessario que, n'um trabalho tedioso e frequentemente interrompido, a atten??o se dirija por muito tempo e sem desvio para idéas até certo ponto congeneres ou pelo menos analogas.
Ajunctando aos titulos dos opusculos as datas em que foram escriptos, o auctor teve em mira habilitar o leitor para o julgar com justi?a. Sem querer no minimo ponto fugir á responsabilidade das suas opini?es, entende que a responsabilidade será ora maior, ora menor, se porventura se attender á epocha em essas opini?es foram manifestadas. O decurso de trinta a quarenta annos, no turbilh?o, cada vez mais rapido, em que hoje as idéas passam, modificando-se, transformando-se, é um periodo que corresponde a seculos nos tempos em que o progresso humano era sem compara??o mais lento. As doutrinas, as aprecia??es criticas, os systemas, os livros quasi que envelhecem t?o depressa como o homem. O pensamento que ha vinte annos parecia uma verdade nova póde hoje parecer apenas um problema n?o resolvido, e até um erro condemnado; a observa??o profunda de ent?o ser hoje trivialidade; a critica subtil, que levou um raio de luz a certos recessos obscuros dos factos, achar-se incorporada e transfigurada em aprecia??o mais complexa que illumine dilatados horisontes. Por isso, a data de cada um dos opusculos contidos nos seguintes volumes é um dos elementos indispensaveis para estes serem avaliados com justi?a e imparcialidade. Nem sempre fugimos á press?o das idéas que se manifestam ao redor de nós, e muito faz aquelle que algumas vezes sabe elevar-se acima das preoccupa??es ou dos interesses da epocha em que escreve.
N?o se associar?o a estas considera??es, que sollicitam a indulgencia, algumas instiga??es do amor proprio? Suspeito que sim. Nos seguintes escriptos ha, em mais de um logar, idéas, previs?es, affirmativas, nega??es que n?o raro grangeiaram para o auctor as qualifica??es de temerario, de paradoxal, de visionario. Em certos casos, o decurso do tempo encarregou-se de decidir de que lado estava ou a perspicacia ou a boa raz?o: em alguns, o paradoxo, a vis?o, foram-se lentamente insinuando em outros espiritos, e mais de uma vez o visionario primitivo veio a achar-se como sumido na turba de tardígrados visionarios. Que o facto n?o contribuisse para se datarem estes opusculos ninguem o acreditaria, nem eu pretendo negá-lo. Chamar?o uns a isso orgulho: chamar-lhe-h?o outros vaidade. E uns e outros ter?o raz?o. A vaidade e o orgulho que s?o, sen?o duas especies de um genero unico de fraquezas? O vaidoso é o que chama o mundo para espectador do seu orgulho: o orgulhoso é o que se colloca a si como unico espectador da propria vaidade. Symptomas varios de enfermidade identica: manifesta??es diversas de uma só miseria do cora??o humano.

A VOZ DO PROPHETA
1837

INTRODUC??O
1867
Depois da epocha em que o seguinte opusculo foi publicado e dos factos que lhe deram origem, têem decorrido mais de trinta annos. Os homens que intervieram nesses factos dormem já, pela maior parte, debaixo da terra. Com raras excep??es, restam apenas alguns dos que eram mais mo?os. O auctor da Voz do Propheta pertence a esse numero. Contava vinte e seis annos naquelle tempo.
O homem de hoje póde julgar imparcialmente o escripto do homem de ent?o. O animo tranquillo póde avaliar a paix?o que o inspirou. Aquelles a quem esse verbo ardente feria viram no auctor um partidario que friamente calculava os resultados politicos das suas palavras. Injusti?a ou erro; o mesmo que havia da parte delle em ver nos homens que forcejavam por dirigir a revolta de 1836, por fazer sair desse facto um governo regular, grandes criminosos. A verdade era que, n'uns davam-se ambi??es, mas ambi??es talvez nobres; n'outros houve, de certo, o sacrificio das proprias sympathias, o silencio imposto ás proprias convic??es, para que a revolta n?o degenerasse em anarchia. Em muitos desses individuos, apparentemente revolucionarios, havia o patriotismo reflexivo, e até a abnega??o, emquanto em nós, os que os aggrediamos com a sinceridade da indigna??o, havia, por amor exagerado aos bons principios, uma colera que em muitas cousas offuscava a raz?o. A Voz do Propheta representa esse estado dos
Continue reading on your phone by scaning this QR Code

 / 70
Tip: The current page has been bookmarked automatically. If you wish to continue reading later, just open the Dertz Homepage, and click on the 'continue reading' link at the bottom of the page.