como hão de
constituir sempre, a maioria do paiz, e foi a esta maioria que ella
entregou os direitos que cedia. Era a legitimidade consagrando outra
legitimidade. Amavam-se, comprehendiam-se ambas. É que entre as
extremidades ha contacto ás vezes. A democracia americana cuida ter
inventado a lei do Linch. Puro plagio. Inventou-a em Portugal a
soberania popular. Havia uma differença. Na America a plebe prende,
julga, condemna á morte e executa; em Portugal o direito divino
reservara para si o tribunal excepcional e o privilegio do cadafalso.
Modesta no exercicio do supremo poder, a soberania popular limitou-se
á prisão, ao espancamento, á multa, elevada, quando occorria, até o
confisco. Se o incendio, o estupro, o assassinio se ingeriam ás vezes
nesses actos judiciaes, era por simples casualidade. Manchas, tem-nas o
sol. O mercador, o artista, o industrial, o professor, o proprietario
urbano e o rural, o homem de letras, o cultivador, o capitalista, todas as
desigualdades sociaes, todos esses attentados vivos contra a perfeita
igualdade democratica conservaram por muito tempo dolorosas
lembranças do amplexo das duas soberanias.
O liberalismo, que durante a contenda fora um pouco aspero para com a
democracia, mais de uma vez tambem, empregara sacrilegamente a
prancha do sabre e a coronha da espingarda para cohibir o excesso de
zêlo administrativo e judicial da soberania popular. A brutalidade do
liberalismo obrigara esta a abdicar após a abdicação da soberania de
direito divino. Os dogmas, pois, em que se estribava a constituição de
1822, e contra os quaes protestava a historia, ainda palpitante, dos
ultimos annos, eram inefficazes, porque os tornava impotentes a
heterodoxia das consciencias. Duvido de que nesses rudes tempos de
positivismo liberal elles obtivessem uma só conversão sincera.
O amor do real e do evidente era um dos grandes defeitos dos homens
de então. O cartismo argumentava: «Que nos importa, dizia, d'onde
veio a Carta? A questão é se ella consagra a liberdade humana e a cérca
de garantias. É deficiente? É defeituosa? Esperemos que a razão
publica, a torrente da opinião force os poderes do estado a completá-la,
a corrigi-la. A opinião illustrada largamente preponderante é irresistivel
nos governos livres. O que não é irresistivel é a opinião de alguns ou de
muitos que benevolamente se encarregam de interpretar pelo proprio
voto o voto commum, o voto dos que têem capacidade para o
dar.--«Não se reputaria louco, accrescentava o cartismo, o representante
de uma familia outr'ora opulenta, mas reduzida á miseria por espoliação
remota, que, ao vir, por impulso espontaneo, o descendente do
espoliador restituir-lhe os bens extorquidos, repellisse aquelle acto de
nobreza e virtude, achando desar recuperá-los pacificamente? E se tal
desar existiu; se a outorga da Carta e a tacita acceitação do paiz não
podiam, aos olhos da metaphysica politica, elevá-la á altura de um
pacto social, os immensos sacrificios que o restaurá-la, depois de
abolida, custou á parte mais illustrada, mais rica, mais activa e
laboriosa da nação, ás forças vivas da sociedade, e as torrentes de
sangue e de lagrymas que serviram de sacro encausto á assignatura do
paiz não valeriam bem o plebiscito da maioria inintelligente, o
plebiscito daquellas classes inferiores que pelejaram até o ultimo
extremo, senão com valor, de certo com ferocidade, para conservar essa
monstruosa e horrivel soberania que a servidão lhes trouxera?
Tem passado trinta annos depois daquella epocha; as paixões
tempestuosas de então fizeram silencio, e o cartismo e o septembrismo
são dous cadaveres sepultados no cemiterio da historia. O auctor da Voz
do Propheta contempla tão placidameute o seu opusculo como se mão
extranha o houvera escripto. A experiencia e os desenganos fazem-no
sorrir daquellas coleras, daquellas hyperboles dos vinte e seis annos.
Quantos erros, quantas ignorancias em muitas das suas opiniões desse
tempo! E todavia, ainda os sentimentos que inspiravam o cartismo no
seu berço lhe parecem nobres e elevados, as doutrinas que constituiam
a sua essencia solidas e justas. É innegavel que o credo democratico,
em que os adversarios se estribavam, tem desde essa epocha adquirido
numerosos sectarios. O velho liberalismo passa de moda. O dogma da
soberania popular, proclamado como supremo direito, substitue o unico
direito absoluto que elle reconhecia, a liberdade e os fóros individuaes.
Isso passou: agora a igualdade civil, que era um consectario do dogma
liberal, transfere-se para o mundo politico, e um nivel imaginario passa
theoricamente por cima de todas as desigualdades humanas, perpetuas,
indestructiveis. A paixão da liberdade esmorece, porque a absorve e
transforma a da igualdade, a mais forte, a quasi unica paixão da
democracia. E a igualdade democratica, onde chega a predominar,
caminha mais ou menos rapida, mas sem desvio, para a sua derradeira
consequencia, a annullação do individuo diante do estado, manifestada
por uma das duas formulas, o despotismo das multidões, ou o
despotismo dos cesares do plebiscito.
O partido cartista tinha por si
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