rigorosamente ás causas da sua existencia, nem aos seus intuitos ou á
sua indole. Mas representava até certo ponto isso tudo, ao mesmo
tempo que era conciso, e facilmente comprehensivel para o vulgo. O
cartista não reputava todas as instituições, todos os preceitos da Carta
como a mais alta manifestação da sabedoria humana. Nesta parte os
liberaes eram em geral eclecticos. Tanto o partido da revolução, como o
anti-revolucionario nenhum tinha em si unidade completa de principios;
nem entre um e outro havia senão antinomias parciaes quanto ás
doutrinas de direito politico. No primeiro, que tomava por base das
ulteriores reformas uma constituição democratica, exagerada até o
despotismo das turbas, havia individuos para quem, como o tempo
mostrou, as theorias da democracia ainda mais moderada eram
altamente odiosas, ao passo que outros forcejavam por chegar, senão á
republica, ao menos a instituições republicanas. No partido cartista
dava-se o mesmo phenomeno. Todas as modificações do governo
representativo tinham ahi fautores; tinham-nos, talvez, até, as doutrinas
do absolutismo illustrado. A meu ver, a distincção profunda e precisa
entre o cartismo e o septembrismo consistia em negar o primeiro o
principio da revolução, dentro das instituições representativas livre e
solemnemente adoptadas ou acceitas pelo paiz, e em affirmá-lo o
segundo. Tudo o mais em ambos os campos era fluctuante e vago.
É essa a explicação de um facto que os homens daquelle tempo poderão
testemunhar recorrendo ás proprias reminiscencias. Alistaram-se nas
fileiras cartistas talvez mais individuos que haviam sido adversos aos
ministros derribados, do que amigos e parciaes seus, ao passo que
alguns destes abraçavam sem hesitar a revolução. De uns e de outros se
deve crer que preferiam nobremente as suas opiniões aos seus
interesses, ás suas affeições ou inimizades pessoaes. Para muitas dessas
opiniões havia logar em ambas as parcialidades. Os que, porém, só
attendiam á moralidade e cordura dos actos de administração ordinaria,
lançavam-se, por via de regra, na revolução; os que, sem desattender
taes questões, sem approvarem corrupções ou iniquidades a que eram
extranhos e que tinham condemnado, remontavam a mais elevadas
considerações de ordem moral e politica, abraçavam o cartismo. Não
falo dos especuladores que se resolviam conforme as vantagens que se
lhes antolhavam n'um ou n'outro campo. O proceder destes taes tinha
na consciencia publica então, como depois, como sempre, uma
qualificação conhecida.
Mas, dir-se-ha, como nessa epocha se disse, que entre o cartismo e o
septembrismo se dava uma distincção mais radical e profunda. A Carta,
outorgada por D. Pedro IV, representava o direito divino dos reis; era
uma concessão de senhor, em vez de um pacto social, ao passo que a
constituição de 1822, derivada da soberania popular, era a consagração
das doutrinas democraticas. Considerada a esta luz, a revolução
adquiria as proporções de um facto gravissimo, porque assentava a
liberdade em novos fundamentos, e vinha a ser um passo gigante dado
na estrada do progresso politico.
Na epocha, quasi exclusivamente liberal, em que se passavam aquelles
successos, a resposta do cartismo a estas allegacões parecia facil. Não
sei se o seria agora; agora que se tem achado e demonstrado, segundo
parece, não prestar para nada o liberalismo. As intelligencias vigorosas
da mocidade hodierna têem aberto caminho a theorias ou novas ou
rejuvenescidas que nós os velhos de hoje e moços de então ou
ignoravamos ou suppunhamos estereis, e talvez pueris, e de que
sorriamos, quando alguns engenhos que reputavamos tão brilhantes
como superficiaes, buscavam, evangelisando-as, jungir por meio dellas
as turbas, más porque ignorantes, odientas porque invejosas,
espoliadoras porque miseraveis, ao carro das proprias ambições. A
questão da soberania popular não era precisamente o que preoccupava
mais os entendimentos, cultos, mas tardos, daquelle tempo, e a
democracia não apaixonava demasiado os animos, sobretudo os animos
dos que haviam pelejado desde os Açores até Evoramonte as batalhas
da liberdade, ou padecido na patria durante cinco annos, sem o
refrigerio sequer de um gemido tolerado, as orgias do despotismo. Uns
tinham visto de perto a face da democracia; tinham-na visto por entre a
selva de oitenta mil baionetas que fora preciso quebrar-lhe nas mãos
para a liberdade triumphar; tinham-na visto nas chapadas e pendores
das collinas que circumdam o Porto, até onde os olhos podem enxergar,
alvejando-lhe nos hombros os cem mil embornaes preparados para
recolher os despojos da cidade da Virgem, da cidade maldicta, rendida
e posta a sacco; outros haviam-na visto de machado e de cutello em
punho, mutilando e assassinando prisioneiros inermes e agrilhoados. O
liberalismo achara a catadura da democracia pouco sympathica.
Restava a soberania popular. Essa funccionara durante cinco annos e
dera mostra de si. A soberania do direito divino, repartindo com ella o
supremo poder, provava que não era tão ignorante como a faziam.
Tinha litteratura. Applicava, modificando-o, o verso:
Divisum imperium cum plebe Caesar habet.
As classes inferiores constituiam então, como hoje,
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