Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 08 | Page 7

Alexandre Herculano
na consciencia, e
fôra uma das testemunhas do entranhado affecto com que elle se
entregara durante annos a trabalhosas investigações, para colligir e
apurar os preciosos monumentos da historia patria e trazê-los á luz
pública. Por ventura aquellas palavras exprimiam um desejo de A.
Herculano, uma esperança de que a publicação ainda houvesse de
proseguir. Por isso o honroso convite que em melhores dias e em vida
do historiador teria declinado sem hesitação, agora lhe parecia
moralmente irrecusavel. Acceitou-o, pois, esquecendo-se do seu estado
valetudinario; acceitou-o menos para ampliar os seus foros de erudito
professor de diplomatica, que para honrar a palavra do mestre e fazer
resurgir do estacionamento em que jazia a obra patriotica em que elle
tanto se empenhara. Na coordenação de volumosos fasciculos que
proficientemente chegou a concluir dessa obra e ajunctou aos
anteriormente publicados, e nas outras devoções já descriptas,

consumiu, emfim, o fallecido academico os derradeiros dias da sua
oppressa existencia, e só abandonou a cella da Torre do Tombo onde
esses labores o attrahiam, quando uma completa extincção de forças
d'alli o afastou para sempre.
Não caberia neste logar o elogio em que houvessem de ser
commemorados todos os relevantes serviços e accentuadas virtudes de
João Pedro da Costa Basto, nem sob ponto de vista algum seriamos
competentes para o tecer. Por ambas as razões o intuito que nos guiou
nas palavras que ficam expostas, foi apenas como que o de lavrar uma
inscripção que recordasse a memoria do devotado amigo de A.
Herculano, e ainda isto em desempenho de um dever porque de um
dever se tractava, embora gratissimo. Todavia, por mais singela que
seja esta inscripção, o livro a que vai juncta não a deixará cair no
esquecimento.
O segundo legatario.

DA PENA DE MORTE
1838

DA PENA DE MORTE
I
Bastaria attender aos verdadeiros principios em que assenta a ordem
social, para conhecer que a pena de morte é um absurdo. Tudo aquillo
em que a sociedade limita a nossa liberdade, offende os nossos
interesses particulares, nos causa pena ou dôr, são direitos cedidos pelo
indivíduo que se resolve a dá-los em troca de outros bens que a
sociedade lhe offerece. Nesta cessão nunca poderá entrar o direito sobre
a própria vida, porque ninguem o tem para lhe pôr termo; portanto no
pacto tácito do indivíduo com a totalidade nunca poderá entrar a
transmissão de um direito que não existe. Se quereis legitimar a pena

de morte, legitimai primeiro o suicidio.
Supponhamos os crimes mais horrorosos commettidos por qualquer:
venha entre nós o parricida, o sacrílego, o assassino culpado de muitas
mortes: ponhamos diante delles o cadáver paterno e a historia do
cordeiro pisado aos pés, e os infelizes salteados na via pública e cosidos
de punhaladas: sentemo-nos como juizes, e interroguemos a voz sincera
da nossa consciencia. Alli estão os criminosos maniatados, cubertos das
maldições e affrontas das turbas que os rodeiam: alli estão as victimas
transmudadas, envoltas em sangue; alli o monumento do insulto
commettido contra Deus. O livro da lei está aberto, e nelle a
condemnação escripta; ao longe ergue-se o patibulo, e atrás delle se
estendem as trévas da eternidade, precedidas pelo espectro da perpétua
ignominia. E os remordimentos estampados nas faces dos culpados, e o
clamor que se alevanta do sangue ou do fundo do sanctuario, e a letra
da lei, os gritos do povo, tudo nos incita a pronunciar o voto fatal; o
coração deve estar seguro, a mão firme, os olhos enxutos. Porém não!
Embora tudo ao redor de nós vozeie morte! Embora a indignação, a lei,
a vingança a aconselhe; a confissão do criminoso a admitta; a alma
recua espavorida, e a consciencia nos grita mais alto e nos diz: olha que
vais ser um assassino. O juiz, habituado a subjugar a voz da
consciencia, a vêr na lei a razão suprema, usado ao tracto e aspecto
hediondo da culpa, familiarisado com a imagem do patíbulo escreverá,
sem tremer, a sentença da condemnação. Mas, ao dá-la, a penna cairá
das mãos daquelle que pela primeira vez se assentar na cadeira do
magistrado, para exercer o mais terrivel dos seus deveres, o assignar
uma sentença de morte.
No campo de batalha terminam-se muitas vezes mais existencias em
um só dia, do que nos cadafalsos em um século. O soldado cuberto de
sangue dos inimigos, dorme tranquillo juncto dos seus cadáveres, seja
veterano ou bisonho: porque não seriam, pois, tranquillas as nossas
noites depois de condemnar um criminoso ao último supplício, embora
fosse pela primeira vez da nossa vida, que déssemos trabalho de sangue
ás mãos maldictas do algoz?
Aproveitai todas as subtilezas da ideologia para dar a razão destas

differenças. Debalde as aproveitareis, se não quiserdes confessar que ao
juiz clama a consciencia que o acto por elle praticado foi um absurdo
cruel, em quanto
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