O poeta Chiado | Page 8

Alberto Augusto de Almeida Pimentel
Sousa».
Achei-a em copia n'uma miscellanea, que pertenceu ao convento da
Graça, de Lisboa, e que eu comprei ao Rodrigues do Pote das Almas
por dez tostões. Se exceptuarmos a carta de Chiado, a miscellanea vale

pouco. Mas eu, folheando-a, li o titulo da carta, passei-a rapidamente
pela vista, reconheci que o texto concordava com o titulo, e adquiri
logo o livro, que o Rodrigues teria vendido mais caro se pudesse
adivinhar a rasão por que eu o comprava.
D'isso era elle capaz, Deus lhe fale na alma.
Antes de transcrever a carta que o Chiado escreveu a um seu amigo de
Coimbra, preciso esclarecer o leitor sobre o assumpto que a inspirou e o
momento em que foi escripta.
O mallogrado principe D. João, filho de D. João III, desposou sua
prima a linda princeza D. Joanna de Castella, que veiu a ser mãe de D.
Sebastião o _Desejado_.
A princeza entrou em Portugal no fim de novembro de 1553[15].
[15] Francisco de Andrade diz que foi em 1552; Pedro de Mariz que foi
em 1554. Mas a carta de Chiado, que merece fé por ser um documento
da epoca, fixa o anno de 1553.
El-rei mandou que fossem buscal-a á fronteira D. João de Lencastre,
duque de Aveiro, e o bispo de Coimbra D. Frei João Soares, os quaes
se fizeram acompanhar de pessoas de categoria, entre as quaes D.
Affonso de Lencastre e D. Luiz de Lencastre, irmãos do duque de
Aveiro.
Na fronteira, D. Diogo Lopes Pacheco, duque de Escalona, e D. Pedro
da Costa, bispo de Osma, fizeram entrega da princeza aos
embaixadores portuguezes.
D. Joanna entrou por Elvas, e d'ahi, após breve demora, seguiu em
jornadas até ao Barreiro, onde D. João III a foi esperar para
acompanhal-a a Lisboa.
O professor Manuel Bento de Sousa poz em relevo a fatalidade
pathologica que desde o berço condemnou D. Sebastião aos desatinos
que veiu a praticar em detrimento e ruina do paiz.

«D. Sebastião, diz o illustre e fallecido professor, é pela mãe neto de
um epileptico[16], e a accumulação da hereditariedade morbida
verificou-se sem perturbação.
«Sua mãe é filha de epileptico e neta de doidos[17], sua avó é irmã do
mesmo epileptico e filha dos mesmos doidos, sua bisavó é irmã e filha
do mesmo epileptico e dos mesmos doidos. Seu avô, por consequencia,
é neto de doidos, e seu pae é bisneto dos mesmos doidos.
«Como exemplo de nevropathia accumulada por herança não ha
melhor[18]!»
[16] O imperador Carlos V.
[17] Joanna _a Doida_ e Filippe I, leviano, perdulario, incapaz de
governar.
[18] _O Doutor Minerva_, pag. 198.
Sobre a inconveniencia physiologica dos casamentos consanguineos,
repetidos de geração em geração entre as casas reaes de Portugal e
Hespanha, vieram accumular-se, pelo enlace do principe D. João com a
princeza D. Joanna, as taras hereditarias da epilepsia e da loucura que
os dois desposados, primos co-irmãos, tinham recebido dos seus
proximos ascendentes communs.
A mãe de D. Sebastião deu provas de uma exaltada hysteria, com
allucinações pavorosas, durante o periodo da gravidez.
Este casamento precipitou a morte do principe D. João e aggravou as
taras da princeza D. Joanna.
Eram duas creanças, ella de 18 annos[19] elle de 16[20], doentes dos
mesmos vicios constitucionaes, e apaixonados um pelo outro. Não
conheceram limites ás suas relações amorosas, entregaram-se a uma
«demasiada communicação» dilacerando-se carinhosamente em
extremos de prazer insaciavel.

[19] D. Joanna tinha nascido a 23 de junho de 1535.
[20] D. João nasceu em Evora a 3 de junho de 1537.
O principe ardia n'um fogo de voluptuosidade, que o devorou
prematuramente. Foi preciso separal-o da princeza, mas já era tarde.
Estava perdido na flor dos annos.
Os medicos d'aquella epocha classificaram a doença de--paixão
hebetica. Os chronistas explicam que o enfermo sentia uma sêde
devoradora; e D. Manuel de Menezes, na chronica que lhe é attribuida,
filia esse phenomeno pathologico no desregramento dos prazeres
carnaes.
Ora o hebetismo--segundo a medicina do nosso tempo--é um estado
morbido, que inutiliza as faculdades intellectuaes, sem comtudo
inutilizar a acção dos sentidos: uma especie de embrutecimento devido
a commoção cerebral[21].
[21] _Dict. de medicine_, segundo o plano de Nysten, refundido por
Littré e Robin.
Assim devia ser, pois que o principe D. João precipitára a crise dos seus
males hereditarios com um exgotamento nervoso.
Mas a--sêde devoradora--_polydipsia_, é um symptoma da diabetes
saccharina, que anda muitas vezes ligada ás nevroses e, principalmente,
á epilepsia.
Não repugna acreditar que a sêde exagerada e continua, que abrazava o
principe, derivasse d'esse conjuncto pathologico recebido por herança e
aggravado por excessos.
E que os chronistas não empregavam a palavra sêde em sentido
figurado, vê-se d'estas palavras da chronica attribuida a D. Manuel de
Menezes: «mas elle (o principe) perseguido da sêde levantou-se uma
manhã da cama a beber agua da chuva, que achou
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