O poeta Chiado | Page 7

Alberto Augusto de Almeida Pimentel
lhe dá. O polhastro
respondia enfadado: «Pois não é outra cousa.»

Vem agora uma anecdota geralmente attribuida a Bocage, mas que não
póde ser sua, pois que o manuscripto d'onde a tomamos é anterior a
1617 e portanto quasi seculo e meio anterior ao nascimento de Bocage.
Entraram ratoneiros em casa do Chiado, e levaram-lhe o melhor que
tinha. Elle viu-os a tempo de poder gritar por soccorro; mas, em vez de
bradar, poz ás costas o refugo que lhe deixaram e foi-os seguindo
derreado sob a carga. Os gatunos, espantados, fizeram alto e
perguntaram-lhe para onde ia. O Chiado respondeu tranquilamente:
«Venho vêr para onde nos mudamos.» Com o que desarmou a audacia
dos amigos do alheio que, rendidos á chalaça, lhe restituiram o bom
que levavam.

Quando alguem queria engendrar uma bréjeirice, ia ter com o Chiado,
que era padre-mestre na materia.

Por isso o consultaram certos vaganaus sobre a «partida» que deveriam
fazer a um mulato fôrro que andava por Lisboa, e a quem tinham asca
por ser valentão e soberbão.
Aconselhou os o Chiado a que, logo que entrasse alguma nau ingleza,
lhe dessem aviso.
Chegou a occasião, veiu um navio inglez e o Chiado, fingindo-se
fidalgo, foi a bordo com alguns d'aquelles tunantes, que dizia seus
criados.
Propoz ao capitão da nau que lhe comprasse um escravo mulato, que
era robusto para o trabalho do mar, mas que não podia amansar em
terra.
Fez-se o ajuste, sob condição de que o escravo iria á mostra.
Os outros picões levaram-n'o a bordo, e como agradasse aos inglezes,
logo receberam d'elles o preço que fôra combinado.
Protestou o mulato não ser captivo, mas não foi acreditado, visto
terem-lhe posto fama de soberbão. Quiz reagir á viva força, mas
lançaram-lhe ferros, visto saberem n'o valente. E teria ido mar em fóra,
como escravo, se a justiça, informada da occorrencia, o não fosse
libertar a bordo, obrigando os vaganaus a restituir o dinheiro recebido
dos inglezes.
Não houve mais nenhum outro procedimento da justiça contra o
inventor e executores d'esta tunantada, que aos proprios magistrados
pareceu graciosa.
O Chiado sahiu incolume, porque foram os socios que pagaram por elle,
e porque a justiça prohibiu ao mulato que tirasse qualquer desfórra.
Palavras textuaes do manuscripto: «...com pena de morte ao negro, que
sobre aquella graça com o Chiado não entendesse, pois fôra tão bem
achada a graça.»

Tal era a cotação da jocosidade do poeta, que até a justiça se lhe rendia;
a natureza dera ao nosso bohemio todos os predicados de gracioso,
incluindo a facilidade de imitar simultaneamente as vozes de muitas
pessoas[14].
[14] «Parece que era ventriloquo, porque imitava ao mesmo tempo as
vozes de differentes pessoas.» _Dic. Popular_, vol. IV, pag 268.

Tinha o Chiado em casa um pote onde fazia os despejos. Um dia
lembrou-se de lhe pôr um tampão e embreal-o exteriormente no bocal e
no bojo, de modo a parecer vasilha para exportar. Chamando depois
quatro mariolas, encommendou-lhes que levassem aquelle pote de
conservas á Ribeira, que o queria embarcar, e que esperassem lá por
elle para lhes pagar o frete.
Como o Chiado não tornasse a apparecer, foram os carrejões avisar a
justiça e requerer que lhes entregasse o pote por indemnisação de seu
trabalho.
Sendo-lhes entregue como cousa perdida, destaparam-n'o «e mettendo
a mão dentro--diz o manuscripto--acharam-se com a conserva que não
imaginavam, e logo viram que fôra lanço do Chiado.»
Logo viram que fôra lanço do Chiado: esta phrase testemunha quanto
era fecunda e inventiva em chistes e logros a imaginação do famoso
bohemio do seculo XVI.
Conheciam-n'o pelo dedo--como gigantesco entre os mais preeminentes
foliões do seu tempo.

Para concluir o extracto do manuscripto, que nos fornece todas estas
anecdotas, resta dizer que passando o Chiado pela porta da Sé viu um
grupo de muchachos e, dando-lhes attenção, ouviu-os dizer:
--Eu tomára ser bispo.

--Eu tomára ser pápa.
--Eu tomára ser rei.
O Chiado, acercando-se d'elles, interpellou-os dizendo:
--E sabeis vós o que eu tomára ser?
--?...
--Tomára ser melão para me beijardes... no sitio em que se beijam os
melões.
Com a differença que elle falou mais claro do que eu.

Aqui terminam os elementos anecdoticos fornecidos pelo manuscripto
para a reconstituição da biographia picaresca do poeta Chiado.
Mas estes, que já não são poucos, bastam a egualar o Chiado com
Bocage em materia de bréjeirices e tunantarias.
V
Entre as producções literarias de Chiado, que eu não pude encontrar em
1889, havia uma, que, pouco tempo depois, veiu casualmente ao meu
encontro.
Era aquella que o abbade Barbosa designa d'este modo na _Bibliotheca
Lusitana_:
«Carta que escreveu de Lisboa a Coimbra da entrada do bispo D. João
Soares, em Lisboa, quando foi á raia pela princeza. É jocosa, e se
conservava na bibliotheca do cardeal de
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