O poeta Chiado | Page 9

Alberto Augusto de Almeida Pimentel
empoçada ao pé de
uma janella, por descuido dos que lhe assistiam, que então o deixaram

só, e sendo muita, e choca, fez-lhe muito mais mal, e logo empeiorou, e
morreu no dia seguinte».
A princeza, excitada pelas sensações amorosas e pelos sobresaltos da
gravidez, redobrou de hysterismos, teve allucinadas visões, pavores
imaginarios, de que ficou noticia.
Na véspera do principe cahir doente, estando elle a dormir, julgou ella
vêr, á luz da tocha que allumiava a camara conjugal, surgir uma figura
de mulher vestida de luto, com larga touca, a qual mulher, crescendo
em vulto, ameaçadora, fez estrincar os dedos e, após um assopro que
parecia o halito quente d'uma féra, desappareceu.
A princeza ficou n'uma grande perturbação de terror, julgando
verdadeira a visão, e interpretou-a no sentido de que o assopro
annunciava que todas as suas esperanças haviam de desfazer-se em
vento.
Quanto ao trinco com os dedos não interpretou coisa nenhuma ou as
chronicas o não dizem.
Tendo fallecido o principe D. João[22] sem que a princeza o soubesse
ao certo, posto o suspeitasse, e já nas vésperas do parto, as damas que
acompanhavam D. Joanna quizeram leval-a a espairecer na Varanda da
Pella, do Paço da Ribeira,
[22] O principe falleceu em terça feira 2 de janeiro de 1554, dezoito
dias antes do parto da princeza.
O palacio dos pricipes era o de Alvaro Peres de Andrade, junto ao Arco
dos Pregos, mas communicava interiormente com o palacio real.
A princeza, profundamente abatida, deixou-se conduzir. A noite e o
silencio favoreceram ainda d'esta vez o terror, sempre contagioso,
mórmente entre as impressionaveis damas, que os tristes
acontecimentos da côrte traziam sobresaltadas.
Bastaria, portanto, que a princeza tivesse uma visão, para que logo

fossem egualmente suggestionadas as suas damas, portuguezas e
castelhanas.
Assim, pois, todas julgaram vêr sahir pela Varanda d'El-rei, direitos ao
Forte[23], muitos homens vestidos á moirisca, com fatos de variegadas
cores, agitando tochas accêsas e soltando repetidas vozes de--_Ly, ly,
ly_. Eira uma especie de dança macabra, em que os moiros
revoluteavam, despedindo clarões e gritos; e quando a chorea,
percorrendo a Varanda, chegava ao Forte, os moiros precipitavam-se ao
Tejo, deixando no silencio da noite uma atmosphera soturna de terror e
mysterio.
[23] O Forte, nome que depois conservou o torreão mandado construir
por Filippe II, rematava sobre o Tejo, uma vasta galeria com terraço, a
meio do qual se erguia uma torre ameiada.
As damas fizeram decerto alarma. Acudiria gente do Paço, que não
soube explicar a apparição sinistra dos moiros. Reconheceu-se que as
portas estavam fechadas; que o ingresso de estranhos era impossivel.
Então cresceria o pavor, e com elle a predisposição para repetir-se a
visualidade no mesmo local e nas mesmas condições.
Foi o que aconteceu. Poucos dias depois tornou a princeza á Varanda
da Pella, fez algum exercicio passeiando; depois sentou-se a uma das
janellas e então se lhe renovou a visão dos moiros, com os mesmos
trajes, as mesmas tochas, os mesmos gritos--na mesma farandola
sinistra.
A princeza e as suas damas fugiram espavoridas sob a mesma
suggestão, pelo contagio do terror. Todas «tinham visto» segunda vez
os moiros. Lembra-nos, por analogia, um facto que Renan refere nos
_Apostolos_. Entre os protestantes perseguidos correu voz de que, nas
ruinas de um templo destruido recentemente, se ouviam psalmos
cantados pelos anjos; tanto bastou para que todos os protestantes que se
aproximavam d'aquellas ruinas, ouvissem os psalmos.
O rei e a rainha, informados do que se passava, recommendaram
segredo.

Convinha não excitar mais a superstição popular, que já estava muito
exaltada por varios factos anteriores, taes como o desacato praticado
por um inglez, logo depois do casamento do principe na capella do
Paço; e a apparição de um meteóro luminoso que todas as noites era
visivel em Lisboa, quasi em cima da Sé, e parecia tomar a fórma de um
athaúde.
Dos nove filhos legitimos de D. João III ficára apenas um, o principe D.
João, e o povo já sabia que elle tinha morrido tambem, posto se
occultasse a sua morte.
Se o parto da princeza se mallograsse, acabar-se-ia a successão directa.
Portugal perderia a sua independencia, não porque el-rei não tivesse
irmãos, que poderiam succeder-lhe no throno, mas porque pelo contrato
de casamento da princeza D. Maria, filha de D. João III, com Filippe II,
a corôa portugueza passaria para D. Carlos, filho d'aquella princeza.
Por isso o povo, cuidadoso de ver garantida a independencia do reino,
«desejava» que a princeza D. Joanna desse á luz um filho varão.
O arcebispo de Lisboa ordenára uma procissão de préces, que se
effectuaria logo que a princeza começasse a sentir as dores do parto.
Pela meia noite de 19 a 20 de janeiro[24] de 1554, quando os sinos dos
conventos tocavam a matinas, houve rebate de que a princeza
experimentava os primeiros symptomas
Continue reading on your phone by scaning this QR Code

 / 18
Tip: The current page has been bookmarked automatically. If you wish to continue reading later, just open the Dertz Homepage, and click on the 'continue reading' link at the bottom of the page.