O poeta Chiado | Page 6

Alberto Augusto de Almeida Pimentel
que picou fundo o Chiado;
certamente elle se teria doído menos de uma descompostura
destemperada, como aquellas que as peixeiras de Lisboa não precisam
ensaiar-se para desfechar na cara de toda a gente. Mas a ironia, o
desprezo da réplica, abespinhou-o; suggeriu-lhe um plano de vingança,

que logo poz em execução.
Disfarçadamente aproximou-se do fogareiro de alguma assadeira de
castanhas ou quejando mister. Aqueceu um trapo, o primeiro que se lhe
deparou, e apossou-se violentamente do peixe, empregando o trapo na
tomadia.
Escarcéo da peixeira, que se dizia roubada. Agglomeração de povo, que
ria do caso exaltando a astucia do Chiado. Appêllo dos dois
contendores para a justiça, visto faltar ainda n'esse tempo o _bureau_
policial da Parreirinha.
A varina fez a sua queixa. Chiado ponderou a circumstancia de se haver
apoderado do peixe com um trapo quente, condição imposta pela
peixeira. Decisão da justiça: que o poeta pagasse os 7 réis e meio que
offerecera, e ficasse com o peixe, pois que a condição do trapo havia
sido satisfeita, ficando salva a fé do contrato.

Era o Chiado ainda frade franciscano--porque depois despiu o habito
por indisciplina ou lh'o despiram por castigo--e começou a embirrar
uma vez com o magro caldo de lentilhas, que lhe deram no refeitorio.
Vai isto de accôrdo com a proverbial pobreza dos franciscanos.
Remexendo no caldo, não encontrou mais que uma lentilha.
Pareceu-lhe pouco nutritivo o singular, e começou a despir-se, como se
quizesse atirar-se a um charco. Reprehenderam-n'o com estranheza.
Elle explicou: que tinha visto apenas um legume no fundo da tigela e
que o queria tomar de mergulho.

D'outra vez--e aqui vai ser preciso o véo--apostou que em pleno
Terreiro do Paço, entre um grupo de dez ou doze picões (arruadores)
que alli estanceavam, era capaz de improvisar um _water closet_, sem
que elles protestassem.

Fingiu-se acossado pela justiça e, correndo direito aos faias (como hoje
diriamos) pediu-lhes que fizessem roda para o livrar de ser preso.
Cahiram no langará, elles, e cerraram-se em parede, de modo que o
supposto fugitivo não pudesse ser visto. Passado algum tempo, o
Chiado parte agradecendo, e só depois foi que, pelo olfacto ou pelos
olhos, os logrados reconheceram o logro.

Não havia aposta bréjeira que lhe não propozessem, e que elle não
acceitasse.
Se seria capaz de açoitar um vinagreiro que ia passando com dois ôdres
sobre a mula? Que sim. Dito e feito. Acercou-se do vinagreiro e
disse-lhe que desatasse um dos ôdres, pois queria provar o vinagre.
Tomou um bochecho e fez cara de não achar bom. Exigiu provar do
outro ôdre, segurando elle proprio no que já estava desatado. De
repente finge vêr alguem ao longe ou querer acudir de prompto a
qualquer incidente. Passa o ôdre ao vinagreiro, que ficou com um em
cada mão, ambos desatados. E então começa a açoitar o pobre homem,
que não poderia defender-se sem deixar perder o vinagre.

Conchavou-se o Chiado com outros tunantes da força d'elle para
engarampar um villão, que veiu a Lisboa comprar trigo. Disse-lhe que
se queria trigo bom o não podia achar melhor que o de um seu irmão,
em certa nau que estava á descarga; que fosse a bordo compral-o, mas
que para não sujar o sombreiro e a capa lh'os deixasse alli no caes, onde
o ficaria esperando. O villão pagou logo sete tostões pelo trigo, e deu a
capa e o sombreiro a guardar. Foi a bordo, em cabello e corpo bem
feito. Mas disseram-lhe lá que não tinham commissario em terra, e que
só faziam negocio com dinheiro na palma da mão. Voltou o homem ao
caes, e já não viu o Chiado; encontrou, porém, os outros guilhotes, os
quaes lhe deram uma carta de quitação que o Chiado deixára para o
parocho do basbaque, explicando tudo. Ora a carta dizia:
João Pires do Outeiro
Me deu a capa e o sombreiro,
Sete tostões em
dinheiro,

E mais me dera
Se mais tivera.

Não tendo que jantar um dia, lobrigou certo mancebo a comprar peixe
na Ribeira. Chegou-se a elle, dizendo ser grande amigo de seu pai. Sob
esta côr o convidou a jantar. Foram os dois, mano a mano, para o local
que o Chiado indicou. Ahi, disse lhe que poizasse o peixe, que logo se
cozinharia, e que fôsse buscar qualquer tempêro que faltava. Quando o
ingénuo moço tornou, já não viu o Chiado nem o peixe.

D'outra vez chamou um polhastro e industriou-o a fingir-se vendilhão,
levando no fundo de uma panela excremento humano. O rapazola
apregoava, como o Chiado lhe ensinou: «Quem merca isto?» Alguns
curiosos queriam ver o que era para comprar. E, reconhecendo a
mercadoria, diziam por claro o nome que se
Continue reading on your phone by scaning this QR Code

 / 18
Tip: The current page has been bookmarked automatically. If you wish to continue reading later, just open the Dertz Homepage, and click on the 'continue reading' link at the bottom of the page.