O Mysterio da Estrada de Cintra | Page 5

Ramalho Ortigão
momento em que a sua companhia principiasse a tornar-se-nos desagradavel, nada nos seria mais facil do que arrancar-lhes as mascaras, arrombar os stores, convidal-os perante o primeiro trem que passasse por n��s a que nos entregassem as suas pistolas, e relaxal-os em seguida aos cuidados policiaes do regedor da primeira parochia que atravessassemos. Parece-me portanto justo que principiemos por prestar o devido culto aos sentimentos da amabilidade, pura e simples, que nos tem aqui reunidos. D'outro modo ficariamos todos grotescos: os senhores terriveis e n��s assustados.
Com quanto estas cousas fossem ditas por F... com um ar de bondade risonha, o nosso interlocutor parecia irritar-se progressivamente ao ouvil-o. Movia convulsivamente uma perna, firmando o cotovello n'um joelho, pousando a barba nos dedos, fitando de perto o meu amigo. Depois, reclinando-se para traz e como se mudasse de resolu??o:
--No fim de contas, a verdade �� que tem raz?o e talvez eu fizesse e dissesse o mesmo no seu logar.
E, tendo meditado um momento, continuou:
--Que diriam por��m os senhores se eu lhes provasse que esta mascara em que querem ver apenas um symptoma burlesco �� em vez d'isso a confirma??o da seriedade do caso que nos trouxe aqui?... Queiram imaginar por um momento um d'esses romances como ha muitos: Uma senhora casada, por exemplo, cujo marido viaja ha um anno. Esta senhora, conhecida na sociedade de Lisboa, est�� gravida. Que delibera??o ha de tomar?
Houve um silencio.
Eu aproveitei a pequena pausa que se seguiu ao enunciado um tanto rude d'aquelle problema e respondi:
--Enviar ao marido uma escriptura de separa??o em regra. Depois, se �� rica, ir com o amante para a America ou para a Suissa; se �� porbre, comprar uma machina de costura e trabalhar para f��ra n'uma agua furtada. �� o destino para as pobres e para as ricas. De resto, em toda a parte se morre depressa n'essas condi??es, n'um cottage �� beira do lago Genebra ou n'um quarto de oito tost?es ao mez na rua dos Vinagres. Morre-se egualmente, de tisica ou de tedio, no esfalfamento do trabalho ou no enj?o do idyllio.
--E o filho?
--O filho, desde que est�� f��ra da familia e f��ra da lei, �� um desgra?ado cujo infortunio prov��m em grande parte da sociedade que ainda n?o soube definir a responsabilidade do pae clandestino. Se os paes fazem como a legisla??o, e mandam buscar gente �� estrada de Cintra para perguntar o que se ha de fazer, o melhor para o filho �� deital-o �� roda.
--O doutor discorre muito bem como philosopho distincto. Como puro medico, esquece-lhe talvez que na conjunctura de que se trata, antes de deitar o filho �� roda ha uma pequena formalidade a cumprir, que �� deital-o ao mundo.
--Isso �� com os especialistas. Creio que n?o �� n'essa qualidade que estou aqui.
--Engana-se. �� precisamente como medico, �� n'essa qualidade que aqui est�� e �� por esse titulo que viemos busca-lo de surpresa �� estrada de Cintra e o levamos a occultas a prestar aux��lio a uma pessoa que precisa d'elle.
--Mas eu n?o fa?o clinica.
--�� o mesmo. N?o exerce essa profiss?o; tanto melhor para o nosso caso: n?o prejudica os seus doentes abandonando-os por algumas horas para nos seguir n'esta aventura. Mas �� formado em Paris e publicou mesmo uma these de cirurgia que despertou a atten??o e mereceu o elogio da faculdade. Queira fazer de conta que vae assistir a um parto.
O meu amigo F... poz-se a rir e observou:
--Mas eu que n?o tenho curso medico nem these alguma de que me accuse na minha vida, n?o querer?o dizer-me o que vou fazer?
--Quer saber o motivo porque se encontra aqui?... Eu lh'o digo.
N'este momento por��m a carruagem parou repentinamente e os nossos companheiros sobresaltados ergueram-se.
III
Percebi que saltava da almofada o nosso cocheiro. Ouvi abrir successivamente as duas lanternas e raspar um phosphoro na roda. Senti depois estalir a mola que comprime a portinha que se fecha depois de accender as velas, e rangerem nos anneis dos cachimbos os p��s das lanternas como se as estivessem endireitando.
N?o comprehend�� logo a raz?o porque nos tivessemos detido para similhante fim, quando n?o tinha ca��do a noite e ��amos por bom caminho.
Isto por��m explica-se por um requinte de precau??o. A pessoa que nos servia de cocheiro n?o quereria parar em logar onde houvesse gente. Se tivessemos de atravessar uma povoa??o, as luzes que principiassem a accender-se e que n��s veriamos atravez da cortina ou das fendas dos stores, poderiam dar-nos alguma id��a do sitio em que nos achassemos. Por esta f��rma esse meio de investiga??o desapparecia. Ao passarmos entre predios ou muros mais altos, a projec??o da luz forte das lanternas sobre as paredes e a reflex?o d'essa claridade para dentro do trem impossibilitava-nos de distinguir se atravessavamos uma aldeia ou uma rua illuminada.
Logo que a carruagem come?ou a rodar depois de accezas as lanternas, aquelle dos
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