O Mandarim | Page 6

José Maria Eça de Queiroz
a cabeça,
respirei o ar calido, consoladamente, como uma corça cançada...
Depois olhei para baixo, para a rua, onde toda uma burguezia se
escoava, n'uma pacata sahida de missa, entre duas filas de trens. Fixei,
aqui e além, inconscientemente, algumas cuias de senhoras, alguns
metaes brilhantes d'arreios. E de repente, veio-me esta idéa, esta
triumphante certeza--que todas aquellas tipoias as podia eu tomar á
hora ou ao anno! Que nenhuma das mulheres que via, deixaria de me
offerecer o seu seio nú, a um aceno do meu desejo! Que todos esses
homens, de sobrecasaca de domingo, se prostrariam diante de mim
como diante de um Christo, de um Mahomet ou de um Buddha, se eu
lhes sacudisse junto á face cento e seis mil contos sobre as praças da
Europa!...
Apoiei-me á varanda: e ri, com tedio, vendo a agitação ephemera
d'aquella humanidade subalterna--que se considerava livre e forte, em
quanto por cima, n'uma sacada de quarto andar, eu tinha na mão, n'um
enveloppe lacrado de negro, o principio mesmo da sua fraqueza e da

sua escravidão!... Então, satisfações do Luxo, regalos do Amor,
orgulhos do Poder, tudo gozei, pela imaginação, n'um instante, e d'um
só sôrvo. Mas logo, uma grande saciedade me foi invadindo a alma: e
sentindo o mundo aos meus pés--bocejei como um leão farto.
De que me serviam por fim tantos milhões, senão para me trazerem, dia
a dia, a affirmação desoladora da villeza humana?... E assim, ao choque
de tanto oiro, ia desapparecer aos meus olhos como um fumo a belleza
moral do Universo! Tomou-me uma tristeza mystica. Abati-me sobre
uma cadeira; e, com a face entre as mãos, chorei abundantemente.
D'ahi a pouco a Madame Marques abria a porta, toda vistosa nas suas
sêdas pretas.
--Está-se á sua espera para jantar, enguiço!...
Emergi da minha amargura para lhe responder seccamente:
--Não janto.
--Mais fica!
N'esse momento estalavam foguetes ao longe. Lembrei-me que era
domingo, dia de touros: de repente uma visão rebrilhou, flammejou,
attrahindo-me deliciosamente:--era a tourada vista d'um camarote;
depois um jantar com Champagne; á noite a orgia, como uma iniciação!
Corri á mesa. Atulhei as algibeiras de letras sobre Londres. Desci á rua
com um furor d'abutre fendendo o ar contra a presa. Uma caleche
passava, vazia. Detive-a, berrei:
--Aos touros!
--São dez tostões, meu amo!
Encarei com repulsão aquelle reles pedaço de materia organisada--que
fallava em placas de prata a um colosso d'oiro! Enterrei a mão na
algibeira ajoujada de milhões, e tirei o meu metal: tinha setecentos e
vinte!

O cocheiro bateu a anca da egoa e seguiu, resmungando. Eu balbuciei:
--Mas tenho letras!... Aqui estão! Sobre Londres! Sobre Hamburgo!...
--Não péga.
Setecentos e vinte!... E touros, jantar de lord, andaluzas nuas, todo esse
sonho expirou como uma bola de sabão que bate a ponta de um prego.
Odiei a Humanidade, abominei o Numerario. Outra tipoia, lançada a
trote, apinhada de gente festiva, quasi me atropellou n'aquella
abstracção em que eu ficára com os meus setecentos e vinte na palma
da mão suada.
Cabisbaixo, enchumaçado de milhões sobre Rothschild, voltei ao meu
quarto andar; humilhei-me á Madame Marques, aceitei-lhe o bife
corneo; e passei essa primeira noite de riqueza, bocejando sobre o leito
solitario,--em quanto fóra o alegre Couceiro, o mesquinho tenente de
quinze mil reis de soldo, ria com a D. Augusta, repenicando á viola o
Fado da Cotovia.
* * * * *
Foi só na manhã seguinte, ao fazer a barba, que reflecti sobre a origem
dos meus milhões. Ella era evidentemente sobrenatural e suspeita.
Mas como o meu Racionalismo me impedia d'attribuir estes thesouros
imprevistos á generosidade caprichosa de Deus ou do Diabo, ficções
puramente escolasticas; como os fragmentos de Positivismo, que
constituem o fundo da minha Philosophia, não me permittiam a
indagação das causas primarias, das origens essenciaes--bem depressa
me decidi a aceitar seccamente este Phenomeno; e a utilisal-o com
largueza. Portanto corri de quinzena ao vento para o London Brazìlian
Bank...
Ahi, arremessei para cima do balcão um papel sobre o Banco
d'Inglaterra, de mil libras; e soltei esta deliciosa palavra:

--Oiro!
Um caixeiro suggeriu-me com doçura:
--Talvez lho fosse mais commodo em notas...
Repeti seccamente:
--Oiro!
Atulhei as algibeiras, devagar, aos punhados: e na rua, ajoujado,
icei-me para uma caleche. Sentía-me gordo, sentia-me obeso; tinha na
bocca um sabor d'oiro, uma seccura de pó d'oiro na pelle das mãos: as
paredes das casas pareciam-me faiscar como longas laminas d'oiro: e
dentro do cerebro ia-me um rumor surdo onde retilintavam
metaes--como o movimento d'um oceano que nas vagas rolasse barras
d'oiro.
Abandonando-me á oscillação das molas, rebolante como um odre mal
firme, deixava cahir sobre a rua, sobre a gente, o olhar turvo e tedioso
do sêr repleto. Emfim, atirando o chapéo para a nuca, estirando a perna,
empinando o ventre, arrotei formidavelmente de flatulencia ricaça...
Muito
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