O Mandarim | Page 5

José Maria Eça de Queiroz
porta, afigurou-se-me que emergia d'um
pesadêlo. Saltei ao corredor. Uma voz jovial fallava com a Madame
Marques; e a cancella da escada cerrou-se subtilmente.
--Quem é que sahiu agora, ó D. Augusta?--perguntei, n'um suor.
--Foi o Cabritinha que vai um bocadinho á batota...
Voltei ao quarto: tudo lá repousava tranquillo, identico, real. O in-folio
ainda estava aberto na pagina temerosa. Reli-a: agora parecia-me
apenas a prosa antiquada d'um moralista caturra; cada palavra se
tornára como um carvão apagado...
Deitei-me:--e sonhei que estava longe, para além de Pekin, nas
fronteiras da Tartaria, no kìosque d'um convento de Lamas, ouvindo
maximas prudentes e suaves que escorriam, com um aroma fino de chá,

dos labios de um Buddha vivo.

II
Decorreu um mez.
Eu, no entanto, rotineiro e triste, lá ia pondo o meu cursivo ao serviço
dos poderes publicos, e admirando aos domingos a pericia tocante com
que a D. Augusta lavava a caspa do Couceiro. Era agora evidente para
mim que, n'essa noite, eu adormecera sobre o in-folio, e sonhára com
uma «Tentação da Montanha» sob fórmas familiares. Instinctivamente,
porém, comecei a preoccupar-me com a China. Ia lêr os telegrammas á
Havaneza; e o que o meu interesse lá buscava, eram sempre as noticias
do Imperio do Meio; parece porém que, a esse tempo, nada se passava
na região das raças amarellas... A Agencia Havas só tagarellava sobre a
Herzegovina, a Bosnia, a Bulgaria e outras curiosidades barbaras....
Pouco a pouco fui esquecendo o meu episodio phantasmagorico: e ao
mesmo tempo, como gradualmente o meu espirito reserenava, voltaram
de novo a mover-se as antigas ambições que lá habitavam,--um
ordenado de Director Geral, um seio amoroso de Lola, bifes mais
tenros que os da D. Augusta. Mas taes regalos pareciam-me tão
inaccessiveis, tão nascidos do sonho--como os proprios milhões do
Mandarim. E pelo monotono deserto da vida,--lá foi seguindo, lá foi
marchando, a lenta caravana das minhas melancolias...
Um domingo de agosto, de manhã, estirado na cama em mangas de
camisa, eu dormitava, com o cigarro apagado no labio--quando a porta
rangeu devagarinho, e entreabrindo a palpebra dormente, vi curvar-se
ao meu lado uma calva respeitosa. E logo uma voz perturbada
murmurou:
--O snr. Theodoro?... O snr. Theodoro do Ministerio do Reino?...
Ergui-me lentamente sobre o cotovêlo e respondi, n'um bocejo:
--Sou eu, cavalheiro.

O individuo recurvou o espinhaço: assim na presença augusta d'el-rei
Bobeche se arquêa o cortezão... Era pequenino e obeso: a ponta das
suiças brancas roçava-lhe as lapellas do fraque d'alpaca: veneraveis
oculos d'oiro reluziam na sua face bochechuda, que parecia uma
prospera personificação da Ordem: e todo elle tremia desde a calva,
lustrosa até aos botíns de bezerro. Pigarreou, cuspilhou, balbuciou:
--São noticias para vossa senhoria! Consideráveis noticias! O meu
nome é Silvestre... Silvestre, Juliano & C.ª... Um serviçal criado de
vossa excellencia... Chegaram justamente pelo paquete de
Southampton... Nós somos correspondentes de Brito, Alves & C.ª de
Macau... Correspondentes de Craig and Co d'Hong-Kong... As letras
vem d'Hong-Kong...
O sujeito engasgava-se; e a sua mão gordinha agitava em tremuras um
enveloppe repleto, com um sello de lacre negro.
--Vossa excellencia--proseguiu--estava decerto prevenido... Nós é que
o não estavamos... A atrapalhação é natural... O que esperamos é que
vossa excellencia nos conserve a sua benevolencia... Nós sempre
respeitámos muito o caracter de vossa excellencia... Vossa excellencia
é n'esta terra uma flôr de virtude, e espelho de bons! Aqui estão os
primeiros saques sobre Bhering and Brothers de Londres... Letras a
trinta dias sobre Rothschild...
A este nome, resoante como o mesmo oiro, saltei vorazmente do leito.
--O que é isso, senhor?--gritei.
E elle, gritando mais, brandindo o enveloppe, todo alçado no bico dos
botins:
--São cento e seis mil contos, senhor! Cento e seis mil contos sobre
Londres, Paris, Hamburgo e Amsterdam, sacados a seu favor,
excellentissimo senhor!... A seu favor, excellentissimo senhor! Pelas
casas de Hong-Kong, de Chang-Hai e de Cantão, da herança depositada
do Mandarim Ti-Chin-Fú!!

Senti tremer o Globo sob os meus pés--e cerrei um momento os olhos.
Mas comprehendi, n'um relance, que eu era, desde essa hora, como
uma incarnação do Sobrenatural, recebendo d'elle a minha força e
possuindo os seus attributos. Não podia comportar-me como um
homem, nem desconsiderar-me em expansões humanas. Até, para não
quebrar a linha hieratica--abstive-me de ir soluçar, como m'o pedia a
alma, sobre o vasto seio da Madame Marques...
D'ora em diante cabia-me a impassibilidade d'um Deus--ou d'um
Demonio: dei, com naturalidade, um puxão ás calças, e disse a Silvestre,
Juliano & C.ª estas palavras:
--Está bem! O Mandarim... Esse Mandarim que disse portou-se com
cavalheirismo. Eu sei de que se trata. É uma questão de familia. Deixe
ahi os papeis... Bons dias.
Silvestre, Juliano & C.ª retirou-se, ás arrecuas, de dorso vergado e
fronte voltada ao chão.
Eu então fui abrir, toda larga, a janella: e, dobrando para traz
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