O Mandarim | Page 7

José Maria Eça de Queiroz
tempo rolei assim pela cidade, bestialisado n'um gozo de
Nababo.
Subitamente um brusco appetite de gastar, de dissipar oiro, veio-me
enfunar o peito corno uma rajada que incha uma véla.
--Pára, animal!--berrei, ao cocheiro.
A parelha estacou. Procurei em redor com a palpebra meio cerrada
alguma coisa cara a comprar--joia de rainha ou consciencia de estadista:
nada vi; precipitei-me então para um estanco.
--Charutos! de tostão! de cruzado! Mais caros! de dez tostões!
--Quantos?--perguntou servilmente o homem.

--Todos!--respondi, com brutalidade.
Á porta, uma pobre toda de luto, com o filho encolhido ao seio,
estendeu-me a mão transparente. Incommodava-me procurar os trocos
de cobre por entre os meus punhados d'oiro. Repelli-a, impaciente: e,
de chapéo sobre o olho, encarei friamente a turba.
Foi então que avistei, adiantando-se, o vulto ponderoso do meu
Director Geral: immediatamente, achei-me com o dorso curvado em
arco e o chapéo comprimentador roçando as lages. Era o habito da
dependencia: os meus milhões não me tinham dado ainda a
verticalidade á espinha...
Em casa despejei o oiro sobre o leito, e rolei-me por cima d'elle, muito
tempo, grunhindo n'um gozo surdo. A torre, ao lado, bateu tres horas; e
o sol apressado já descia, levando comsigo o meu primeiro dia de
opulencia... Então, couraçado de libras, corri a saciar-me!
Ah, que dia! Jantei n'um gabinete do Hotel Central, solitario e egoista,
com a mesa alastrada de Bordeus, Borgonha, Champagne, Rheno,
licôres de todas as communidades religiosas--como para matar uma
sêde de trinta annos! Mas só me fartei de Collares. Depois,
cambaleando, arrastei-me para o Lupanar! Que noite! A alvorada
clareou por traz das persianas; e achei-me estatelado no tapete,
exhausto e semi-nú, sentindo o corpo e a alma como esvaírem-se,
dissolverem-se n'aquelle ambiente abafado onde errava um cheiro de
pó de arroz, de fêmea e de punch...
Quando voltei á travessa da Conceição, as janellas do meu quarto
estavam fechadas, e a véla expirava, com fogachos lividos, no castiçal
de latão. Então ao chegar junto á cama, vi isto: estirada de través, sobre
a coberta, jazia uma figura bojuda, de Mandarim fulminado, vestida de
sêda amarella, com um grande rabicho solto; e entre os braços como
morto tambem, tinha um papagaio de papel!
Abri desesperadamente a janella: tudo desappareceu;--o que estava
agora sobre o leito era um velho paletot alvadio.

III
Então começou a minha vida de milionario. Deixei bem depressa a casa
da Madame Marques--que, desde que me sabía rico, me tratava todos
os dias a arroz dôce, e ella mesma me servia, com o seu vestido de sêda
dos domingos. Comprei, habitei o palacete amarello, ao Loreto: as
magnificencias da minha installação são bem conhecidas pelas gravuras
indiscretas da Illustração Franceza. Tornou-se famoso na Europa o meu
leito, d'um gosto exuberante e barbaro, com a barra recoberta de
laminas d'ouro lavrado, e cortinados d'um raro brocado negro onde
ondeam, bordados a perolas, versos eroticos de Catullo; uma lampada,
suspensa no interior, derrama alli a claridade lactea e amorosa d'um
luar de verão.
Os meus primeiros mezes ricos, não o occulto, passei-os a amar--a
amar com o sincero bater de coração d'um pagem inexperiente. Tinha-a
visto, como n'uma pagina de novella, regando os seus craveiros á
varanda: chamava-se Candida; era pequenina, era loira; morava a
Buenos-Ayres, n'uma casinha casta recoberta de trepadeiras; e
lembrava-me pela graça e pelo airoso da cinta, tudo o que a Arte tem
creado de mais fino e fragil--Mimi, Virginia, a Joanninha do Valle de
Santarem.
Todas as noites eu cahia, em extasis de mystico, aos seus pés côr de
jaspe. Todas as manhãs lhe alastrava o regaço de notas de vinte mil reis:
ella repellia-as primeiro com um rubor,--depois, ao guardal-as na
gaveta, chamava-me o seu anjo Tótó.
Um dia que eu me introduzira, a passos subtis, por sobre o espesso
tapete syrio, até ao seu boudoir--ella estava escrevendo, muito enlevada,
de dedinho no ar: ao vêr-me, toda tremula, toda pallida, escondeu o
papel que tinha o seu monogramma. Eu arranquei-lh'o, n'um ciume
insensato. Era a carta, a carta costumada, a carta necessaria, a carta que
desde a velha antiguidade a mulher sempre escreve; começava por meu
idolatrado--e era para um alferes da visinhança...

Desarraiguei logo esse sentimento do meu peito como uma planta
venenosa. Descri para sempre dos Anjos loiros, que conservam no
olhar azul o reflexo dos céos atravessados: de cima do meu oiro, deixei
cahir sobre a Innocencia, o Pudor, e outras idealisações funestas acida
gargalhada de Mephistopheles: e organisei friamente uma existencia
animal, grandiosa e cynica.
* * * * *
Ao bater do meio dia, entrava na minha tina de marmore côr de rosa,
onde os perfumes derramados davam á agua um tom opaco de leite:
depoîs pagens tenros, de mão macia, fríccionavam-me com o
ceremonial de quem celebra um culto: e embrulhado n'um
robe-de-chambre de sêda da India,
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