O Livro de Cesário Verde | Page 8

Cesario Verde
vem! A actriz que tanto comprimento
E a quem, á noite
na plateia, attraio
Os olhos lizos como polimento!
Com seu rostinho
estreito, friorento,
Caminha agora para o seu ensaio.
E aos outros eu admiro os dorsos, os costados
Como lajões. Os bons
trabalhadores!
Os filhos das lezirias, dos montados;
Os das
planicies, altos, aprumados;
Os das montanhas, baixos, trepadores!
Mas fina de feições, o queixo hostil, distincto,
Furtiva a tiritar em
suas pelles,
Espanta-me a actrizita que hoje pinto,
N'este dezembro
energico, succinto,
E n'estes sitios suburbanos, reles!
Como animaes communs, que uma picada esquente,
Elles, bovinos,
masculos, ossudos,
Encaram-n'a sanguinea, brutamente:
E ella
vacilla, hesita impaciente
Sobre as botinhas de tacões agudos.
Porém, desempenhando o seu papel na peça,
Sem que inda o publico
a passagem abra,
O demonico arrisca-se, atravessa
Covas, entulhos,
lamaçaes, depressa,
Com seus pésinhos rapidos, de cabra!
NOITES GELIDAS
MERINA
Rosto comprido, airosa, angelical, macia,
Por vezes, a allemã que eu
sigo e que me agrada,
Mais alva que o luar de inverno que me esfria,

Nas ruas a que o gaz dá noites de ballada;
Sob os abafos bons que

o Norte escolheria,
Com seu passinho curto e em suas lãs forrada,

Recorda-me a elegancia, a graça, a galhardia
De uma ovelhinha
branca, ingenua e delicada.
SARDENTA
Tu, n'esse corpo completo,
Ó lactea virgem doirada,
Tens o
lymphatico aspecto
D'uma camelia melada.
FLORES VELHAS
Fui hontem visitar o jardimzinho agreste,
Aonde tanta vez a luz nos
beijou,
E em tudo vi sorrir o amor que tu me deste,
Soberba como
um sol, serena como um vôo.
Em tudo scintillava o limpido poema
Com osculos rimado ás luzes
dos planetas;
A abelha inda zumbia em torno da alfazema;
E
ondulava o matiz das leves borboletas.
Em tudo eu pude ver ainda a tua imagem,
A imagem que inspirava os
castos madrugaes;
E as virações, o rio, os astros, a pasizagem,

Traziam-me á memoria idyllios immortaes.
Diziam-me que tu, no florido passado,
Detinhas sobre mim, ao pé
d'aquellas rosas,
Aquelle teu olhar moroso e delicado,
Que fala de
languor e d'emoções mimosas;
E, ó pallida Clarisse, ó alma ardente e pura,
Que não me desgostou
nem uma vez sequer,
Eu não sabia haurir do calix da ventura
O
nectar que nos vem dos mimos da mulher.
Falou-me tudo, tudo, em tons commovedores,
Do nosso amor, que
uniu as almas de dois entes;
As falas quasi irmãs do vento com as
flores
E a molle exhalação das varzeas rescendentes.
Inda pensei ouvir aquellas coisas mansas
No ninho de affeições

creado para ti,
Por entre o riso claro, e as vozes das creanças,
E as
nuvens que esbocei, e os sonhos que nutri.
Lembrei-me muito, muito, ó symbolo das santas,
Do tempo em que
eu soltava as notas inspiradas,
E sob aquelle ceo e sobre aquellas
plantas
Bebemos o elixir das tardes perfumadas.
E nosso bom romance escripto n'um desterro,
Com beijos sem ruido
em noites sem luar,
Fizeram-m'o reler, mais tristes que um enterro,

Os goivos, a baunilha e as rosas de toucar.
Mas tu agora nunca, ah! nunca mais te sentas
Nos bancos de tijolo em
musgo atapetados,
E eu não beijarei, ás horas somnolentas,
Os
dedos de marfim, polidos e delgados...
Eu, por não ter sabido amar os movimentos
Da estrophe mais ideal
das harmonias mudas,
Eu sinto as decepções e os grandes desalentos

E tenho um riso mau como o sorrir de Judas.
E tudo emfim passou, passou como uma penna,
Que o mar leva no
dorso exposto aos vendavaes,
E aquella doce vida, aquella vida
amena,
Ah! nunca mais virá, meu lyrio, nunca mais!
Ó minha boa amiga, ó minha meiga amante!
Quando hontem eu pisei,
bem magro e bem curvado,
A areia em que rangia a saia roçagante,

Que foi na minha vida o ceo aurirosado,
Eu tinha tão impresso o cunho da saudade,
Que as ondas que formei
das suas illusões
Fizeram-me enganar na minha soledade
E as azas
ir abrindo ás minhas impressões.
Soltei com devoção lembranças inda escravas,
No espaço construi
phantasticos castellos,
No tanque debrucei-me em que te debruçavas,

E onde o luar parava os raios amarellos.

Cuidei até sentir, mais doce que uma prece,
Suster a minha fé, n'um
veo consolador,
O teu divino olhar que as pedras amollece,
E ha
muito que me prendeu nos carceres do amor.
Os teus pequenos pés, aquelles pés suaves,
Julguei-os esconder por
entre as minhas mãos,
E imaginei ouvir ao conversar das aves
As
celicas canções dos anjos aos teus irmãos.
NOITE FECHADA
(L.)
Lembras-te tu do sabbado passado,
Do passeio que démos, devagar,

Entre um saudoso gaz amarellado
E as caricias leitosas do luar?
Bem me lembro das altas ruasinhas,
Que ambos nós percorremos de
mãos dadas:
Ás janellas palravam as visinhas;
Tinham lividas luzes
as fachadas.
Não me esqueço das cousas que disseste,
Ante um pesado templo
com recortes;
E os cemiterios ricos, e o cypreste
Que vive de
gorduras e de mortes!
Nós saíramos proximo ao sol-posto,
Mas seguiamos cheios de
demoras;
Não me esqueceu ainda o meu desgosto
Nem o sino
rachado que deu horas.
Tenho ainda gravado no sentido,
Porque tu caminhavas com prazer,

Cara rapada, gordo e presumido,
O padre que parou para te ver.
Como uma mitra a cúpula da egreja
Cobria parte do ventoso largo;

E essa bocca viçosa de cereja,
Torcia risos com sabor amargo.
A lua dava tremulas brancuras,
Eu ia cada
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