O Livro de Cesário Verde | Page 7

Cesario Verde
feia,
E pendurando os seus bracinhos brancos.
Do patamar responde-lhe um criado:
«Se te convém, despacha; não
converses.
Eu não dou mais.» E muito descançado,
Atira um cobre
livido, oxidado,
Que vem bater nas faces d' uns alperces.
Subitamente,--que visão de artista!--
Se eu transformasse os simples
vegetaes,
Á luz do sol, o intenso colorista,
N'um ser humano que se
mova e exista
Cheio de bellas proporções carnaes?!
Boiam aromas, fumos de cozinha;
Com o cabaz ás costas, e vergando,

Sobem padeiros, claros de farinha;
E ás portas, uma ou outra
campainha
Toca, frenetica, de vez em quando.

E eu recompunha, por anatomia,
Um novo corpo organico, aos
bocados.
Achava os tons e as fórmas. Descobria
Uma cabeça n'uma
melancia,
E n'uns repolhos seios injectados.
As azeitonas, que nos dão o azeite,
Negras e unidas, entre verdes
folhos,
São tranças d'um cabello que se ageite;
E os nabos--ossos
nus, da côr do leite,
E os cachos d'uvas--os rosarios d'olhos.
Ha collos, hombros, boccas, um semblante
Nas posições de certos
fructos. E entre
As hortaliças, tumido, fragrante,
Como d'alguem
que tudo aquilo jante,
Surge um melão, que me lembrou um ventre.
E, como um feto, emfim, que se dilate,
Vi nos legumes carnes
tentadoras,
Sangue na ginja vivida, escarlate,
Bons corações
pulsando no tomate
E dedos hirtos, rubros, nas cenouras.
O sol dourava o céo. E a regateira,
Como vendera a sua fresca alface

E déra o ramo de hortelã que cheira,
Voltando-se, gritou-me
prazenteira:
«Não passa mais ninguem!... Se me ajudasse?!...»
Eu acerquei-me d'ella, sem desprezo;
E, pelas duas azas a quebrar,

Nós levantámos todo aquelle peso
Que ao chão de pedra resistia
preso,
Com um enorme esforço muscular.
«Muito obrigada! Deus lhe dê saúde!»
E recebi, náquella despedida,

As forças, a alegria, a plenitude,
Que brotam d'um excesso de
virtude
Ou d'uma digestão desconhecida.
E em quanto sigo para o lado opposto,
E ao longe rodam umas
carruagens,
A pobre afasta-se, ao calor de agosto,
Descolorida nas
maçãs do rosto,
E sem quadris na saia de ramagens.
Um pequerrucho rega a trepadeira
D'uma janella azul; e, com o ralo

Do regador, parece que joeira
Ou que borrifa estrellas; e a poeira

Que eleva nuvens alvas e incensal-o.

Chegam do gigo emanações sadias,
Oiço um canario--que infantil
chilrada!--
Lidam ménages entre as gelosias,
E o sol estende, pelas
frontarias,
Seus raios de laranja distillada.
E pittoresca e audaz, na sua chita,
O peito erguido, os pulsos nas
ilhargas,
D'uma desgraça alegre que me incita,
Ella apregôa, magra,
enfezadita,
As suas couves repolhudas, largas.
E como as grossas pernas d'um gigante,
Sem tronco, mas athleticas,
inteiras,
Carregam sobre a pobre caminhante,
Sobre a verdura
rustica, abundante,
Duas frugaes aboboras carneiras.
CRYSTALISAÇÕES
A Bettencourt Rodrigues
Faz frio. Mas, depois d'uns dias de aguaceiros,
Vibra uma immensa
claridade crua.
De cocaras, em linha os calceteiros,
Com lentidão,
terrosos e grosseiros,
Calcam de lado a lado a longa rua.
Como as elevações seccaram do relento,
E o descoberto sol abafa e
cria!
A frialdade exige o movimento;
E as poças d'agua, como em
chão vidrento,
Reflectem a molhada casaria.
Em pé e perna, dando aos rins que a marcha agita,
Disseminadas,
gritam as peixeiras;
Luzem, aquecem na manhã bonita,
Uns
barracões de gente pobresita.
E uns quintalorios velhos com parreiras.
Não se ouvem aves; nem o choro d'uma nora!
Tomam por outra parte
os viandantes;
E o ferro e a pedra--que união sonora!--
Retinem alto
pelo espaço fóra,
Com choques rijos, asperos, cantantes.
Bom tempo. E os rapagões, morosos, duros, baços,
Cuja columna
nunca se endireita,
Partem penedos; cruzam-se estilhaços.
Pesam
enormemente os grossos maços,
Com que outros batem a calçada

feita.
A sua barba agreste! A lã dos seus barretes!
Que espessos forros!
N'uma das regueiras
Acamam-se as japonas, os colletes:
E elles
descalçam com os picaretes,
Que ferem lume sobre pederneiras.
E n'esse rude mez, que não consente as flores,
Fundêam, como a
esquadra em fria paz,
As arvores despidas. Sobrias côres!
Mastros,
enxarcias, vergas! Valladores
Atiram terra com as largas pás.
Eu julgo-me no Norte, ao frio--o grande agente!--
Carros de mão, que
chiam carregados,
Conduzem saibro, vagarosamente;
Vê se a
cidade, mercantil, contente:
Madeiras, aguas, multidões, telhados!
Negrejam os quintaes, enxuga e alvenaria;
Em arco, sem as nuvens
fluctuantes,
O ceu renova a tinta corredia;
E os charcos brilham
tanto, que eu diria
Ter ante mim lagôas de brilhantes!
E engelhem muito embora, os fracos, os tolhidos,
Eu tudo encontro
alegremente exacto.
Lavo, refresco, limpo os meus sentidos.
E
tangem-me, excitados, sacudidos,
O tacto, a vista, o ouvido, o gosto,
o olfacto!
Pede-me o corpo inteiro esforços na friagem
De tão lavada e egual
temperatura!
Os ares, o caminho, a luz reagem;
Cheira-me a fogo, a
silex, a ferragem;
Sabe-me a campo, a lenha, a agricultura.
Mal encarado e negro, um pára emquanto eu passo;
Dois assobiam,
altas as marretas
Possantes, grossas, temperadas d'aço;
E um gordo,
o mestre, com um ar de ralaço
E manso, tira o nivel das valletas.
Homens de carga! Assim as bestas vão curvadas!
Que vida tão
custosa! Que diabo!
E os cavadores pousam as enxadas,
E cospem
nas callosas mãos gretadas,
Para que não lhes escorregue o cabo.

Povo! No panno cru rasgado das camizas
Uma bandeira penso que
transluz!
Com ella soffres, bebes, agonisas:
Listrões de vinho
lançam-lhe divisas,
E os suspensorios traçam-lhe uma cruz!
D'escuro, bruscamente, ao cimo da barroca,
Surge um perfil direito
que se aguça;
E ar matinal de quem sahiu da toca,
Uma figura fina,
desemboca,
Toda abafada n'um casaco á russa.
D'onde ella
Continue reading on your phone by scaning this QR Code

 / 19
Tip: The current page has been bookmarked automatically. If you wish to continue reading later, just open the Dertz Homepage, and click on the 'continue reading' link at the bottom of the page.