O Livro de Cesário Verde | Page 9

Cesario Verde
vez mais magoado;
Vi
um jardim com arvores escuras,
Como uma jaula todo gradeado!

E para te seguir entrei comtigo
N'um pateo velho que era d'um
canteiro,
E onde, talvez, se faça inda o jazigo
Em que eu irei
apodrecer primeiro!
Eu sinto ainda a flôr da tua pelle,
Tua luva, teu veu, o que tu és!

Não sei que tentação é que te impelle
Os pequeninos e cançados pés.
Sei que em tudo attentavas, tudo vias!
Eu por mim tinha pena dos
marçanos,
Como ratos, nas gordas mercearias,
Encafunados por
immensos annos!
Tu sorriras de tudo: Os carvoeiros,
Que apparecem ao fundo d'umas
minas,
E á crua luz os pallidos barbeiros
Com oleos e maneiras
femininas!
Fins de semana! Que miseria em bando!
O povo folga, estupido e
grisalho!
E os artistas d'officio iam passando,
Com as ferias, ralados
do trabalho.
O quadro anterior, d'um que á candêa,
Ensina a filha a ler, metteu-me
dó!
Gosto mais do plebeu que cambalêa,
Do bebado feliz que falla
só!
De subito, na volta de uma esquina,
Sob um bico de gaz que abria em
leque,
Vimos um militar, de barretina
E galões marciaes de
pechisbeque,
E em quanto elle fallava ao seu namoro,
Que morava n'um predio de
azulêjo,
Nos nossos labios retinio sonoro
Um vigoroso e formidavel
beijo!
E assim ao meu capricho abandonada,
Errámos por travessas, por
viellas,
E passámos por pé d'uma tapada
E um palacio real com
sentinellas.
E eu que busco a moderna e fina arte,
Sobre a umbrosa calçada

sepulchral,
Tive a rude intenção de violentar-te
Imbecilmente como
um animal!
Mas ao rumor dos ramos e d'aragem,
Como longiquos bosques muito
ermos,
Tu querias no meio da folhagem
Um ninho enorme para nós
vivermos.
E ao passo que eu te ouvia abstractamente,
Ó grande pomba tépida
que arrulha,
Vinham batendo o macadam fremente,
As patadas
sonoras da patrulha,
E atravez a immortal cidadesinha,
Nós fomos ter ás portas, ás
barreiras,
Em que uma negra multidão se apinha
De tecelões, de
fumos, de caldeiras.
Mas a noite dormente e esbranquiçada
Era uma esteira lucida d'amor;

Ó jovial senhora perfumada,
Ó terrivel creança! Que esplendor!
E ali começaria o meu desterro!...
Lodoso o rio, e glacial, corria;

Sentámo-nos, os dois, n'um novo aterro
Na muralha dos caes de
cantaria.
Nunca mais amarei, já que não me amas,
E é preciso, decerto, que me
deixes!
Toda a maré luzida como escamas,
Como alguidar de
prateados peixes.
E como é necessario que eu me afoite
A perder-me de ti por quem
existo,
Eu fui passar ao campo aquella noite
E andei leguas a pé,
pensando n'isto.
E tu que não serás sómente minha,
Ás caricias leitosas do luar,

Recolheste-te, pallida e sósinha
Á gaiola do teu terceiro andar!
MANHANS BRUMOSAS
Aquella, cujo amor me causa alguma pena,
Põe o chapeo ao lado,

abre o cabello á banda,
E com a forte voz cantada com que ordena,

Lembra-me, de manhan, quando nas praias anda,
Por entre o campo e
o mar, bucolica, morena,
Uma pastora audaz da religiosa Irlanda.
Que linguas fala? A ouvir-lhe as inflexões inglezas,
--Na Nevoa azul,
a caça, as pescas, os rebanhos!--
Sigo-lhe os altos pés por estas
asperezas;
E o meu desejo nada em epoca de banhos,
E, ave de
arribação, elle enche de surprezas
Seus olhos de perdiz, redondos e
castanhos.
As irlandezas teem soberbos desmazelos!
Ella descobre assim, com
lentidões ufanas,
Alta, escorrida, abstracta, os grossos tornozelos;
E
como aquellas são maritimas, serranas,
Suggere-me o naufragio, as
musicas, os gelos
E as redes, a manteiga, os queijos, as choupanas.
Parece um «rural boy»! Sem brincos nas orelhas,
Traz um vestido
claro a comprimir-lhe os flancos,
Botões a tiracollo e applicações
vermelhas;
E á roda, n'um paiz de prados e barrancos,
Se as minhas
maguas vão, mansissimas ovelhas,
Correm os seus desdens, como
vitellos brancos.
E aquella, cujo amor me causa alguma pena,
Põe o chapeo ao lado,
abre o cabello á banda,
E com a forte voz cantada com que ordena,

Lembra-me, de manhan, quando nas praias anda,
Por entre o campo e
o mar, catholica, morena,
Uma pastora de audaz da religiosa Irlanda.
FRIGIDA
I
Balzac é meu rival, minha senhora ingleza!
Eu quero-a porque odeio
as carnações redondas!
Mas elle eternisou-lhe a singular belleza
E
eu turbo-me ao deter seus olhos côr das ondas.
II

Admiro-a. A sua longa e placida estatura
Expõe a magestade austera
dos invernos.
Não cora no seu todo a timida candura;
Dansam a paz
dos ceos e o assombro dos infernos.
III
Eu vejo-a caminhar, fleugmatica, irritante,
N'uma das mãos franzindo
um lenço de cambraia!...
Ninguem me prende assim, funebre,
extravagante,
Quando arregaça e ondula a preguiçosa saia!
IV
Ouso esperar, talvez, que o seu amor me acoite,
Mas nunca a fitarei
d'uma maneira franca;
Traz o esplendor do Dia e as pallidez da Noite,

É, como o Sol, dourada, e, como a Lua, branca!
V
Podesse-me eu prostrar, n'um meditado impulso,
Ó gelida mulher
bizarramente estranha,
E tremulo depor os labios no seu pulso,

Entre a macia luva e o punho de bretanha!...
VI
Scintilla no seu rosto a lucidez das joias.
Ao encarar comsigo a
phantasia pasma;
Pausadamente lembra o silvo das giboias
E a
marcha demorada e muda d'um phantasma.
VII
Metallica visão que Charles Baudelaire
Sonhou e presentiu nos seus
delirios mornos,
Permitta que eu lhe adule a distincção que fere,
As
curvas de magreza e o lustre
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