O Livro de Cesário Verde | Page 6

Cesario Verde
no
jazigo!
XII
Mergulha-se em angustias lacrimosas
Nos ermos d'um castello
abandonado,
E as proximas florestas tenebrosas
Repercutem um
choro amargurado.
Unissemos, nós dois, as nossas covas,
Ó doce castellã das minhas

trovas!
II
NATURAES
CONTRARIEDADES
Eu hoje estou cruel, frenetico, exigente;
Nem posso tolerar os livros
mais bizarros.
Incrivel! Já fumei tres massos de cigarros
Consecutivamente.
Doe-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos:
Tanta depravação
nos usos, nos costumes!
Amo, insensatamente, os acidos, os gumes
E os angulos agudos.
Sentei-me á secretaria. Alli defronte móra
Uma infeliz, sem, peito, os
dois pulmões doentes;
Soffre de falta d'ar, morreram-lhe os parentes
E engomma para fóra.
Pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas!
Tão livida! O doutor
deixou-a. Mortifica.
Lidando sempre! E deve a conta á botica!
Mal ganha para sopas...
O obstaculo estimula, torna-nos perversos;
Agora sinto-me eu cheio
de raivas frias,
Por causa d'um jornal me regeitar, ha dias,
Um folhetim de versos.
Que mau humor! Rasguei uma epopeia morta
No fundo da gaveta. O
que produz o estudo?
Mais d'uma redacção, das que elogiam tudo,
Me tem fechado a porta.

A critica segundo o methodo de Taine
Ignoram-n'a. Juntei n'uma
fogueira immensa.
Muitissimos papeis ineditos. A imprensa
Vale um desdem solemne.
Com raras excepções merece-me o epigramma.
Deu meia-noite; e em
paz pela calçada abaixo,
Um sol-e-dó. Chovisca. O populacho
Diverte-se na lama.
Eu nunca dediquei poemas ás fortunas,
Mas sim, por deferencia a
amigos ou a artistas,
Independente! Só por isso os jornalistas
Me negam as columnas.
Receiam que o assignante ingenuo os abandone,
Se forem publicar
taes cousas, taes auctores.
Arte? Não lhes convem, visto que os seus
leitores
Deliram por Zaccone.
Um prosador qualquer desfructa fama honrosa,
Obtem dinheiro,
arranja a sua «coterie»;
E a mim, não ha questão que mais me
contrarie
Do que escrever em prosa.
A adulação repugna aos sentimentos finos;
Eu raramente falo aos
nossos litteratos,
E apuro-me em lançar originaes e exactos,
Os meus alexandrinos...
E a tisica? Fechada, e com o ferro acceso!
Ignora que a asphyxia a
combustão das brazas,
Não foge do estendal que lhe humedece as
casas,
E fina-se ao desprezo!

Mantem-se a chá e pão! Antes de entrar na cova.
Esvae-se; e todavia,
á tarde, fracamente,
Oiço-a cantarolar uma canção plangente
D'uma opereta nova!
Perfeitamente. Vou findar sem azedume.
Quem sabe se depois, eu
rico e n'outros climas,
Conseguirei reler essas antigas rimas,
Impressas em volume?
Nas lettras eu conheço um campo de manobras;
Emprega-se a
réclame, a intriga, o annuncio, a blague,
E esta poesia pede um editor
que pague
Todas as minhas obras...
E estou melhor; passou-me a colera. E a visinha?
A pobre
engommadeira ir-se-ha deitar sem ceia?
Vejo-lhe luz no quarto. Inda
trabalha. É feia...
Que mundo! Coitadinha!
A DEBIL
Eu, que sou feio, solido, leal,
A ti, que és bella, fragil, assustada,

Quero estimar-te, sempre, recatada
N'uma existencia honesta, de
crystal.
Sentado á mesa d'um café devasso,
Ao avistar-te, ha pouco, fraca e
loura,
N'esta Babel tão velha e corruptora,
Tive tenções de
offerecer-te o braço.
E, quando soccorreste um miseravel,
Eu, que bebia calices d'absintho,

Mandei ir a garrafa, porque sinto
Que me tornas prestante, bom,
saudavel.
«Ella ahi vem!» disse eu para os demais;
E puz-me a olhar, véxado e

suspirando,
O teu corpo que pulsa, alegre e brando,
Na frescura dos
linhos matinaes.
Via-te pela porta envidraçada;
E invejava,--talvez que o não
suspeites!--
Esse vestido simples, sem enfeites,
N'essa cintura tenra,
immaculada.
Ia passando, a quatro, o patriarcha.
Triste eu sahi. Doía-me a cabeça;

Uma turba ruidosa, negra, espessa,
Voltava das exequias d'um
monarcha.
Adoravel! Tu muito natural
Seguias a pensar no teu bordado;

Avultava, n'um largo arborisado,
Uma estatua de rei n'um pedestal.
Sorriam nos seus trens os titulares;
E ao claro sol, guardava-te, no
entanto,
A tua boa mãe, que te ama tanto,
Que não te morrerá sem
te casares!
Soberbo dia! Impunha-me respeito
A limpidez do teu semblante
grego;
E uma familia, um ninho de socego,
Desejava beijar sobre o
teu peito.
Com elegancia e sem ostentação,
Atravessavas branca, esvelta e fina,

Uma chusma de padres de batina,
E d'altos funccionarios da nação.
«Mas se a atropella o povo turbolento!
Se fosse, por acaso, alli
pisada!»
De repente, paraste embaraçada
Ao pé d'um numeroso
ajuntamento.
E eu, que urdia estes faceis esbocetos,
Julguei vêr, com a vista de
poeta,
uma pombinha timida e quieta
N'um bando ameaçador de
corvos pretos.
E foi, então, que eu homem varonil,
Quiz dedicar-te a minha pobre
vida,
A ti, que és tenue, docil, reconhecida,
Eu, que sou habil,
pratico, viril.

N'UM BAIRRO MODERNO
A Manuel Ribeiro
Dez horas da manhã; os transparentes
Matizam uma casa apalaçada;

Pelos jardins estancam-se os nascentes,
E fere a vista, com
brancuras quentes,
A larga rua macadamisada.
Rez-de-chaussée repousam socegados,
Abriram-se, n'alguns, as
persianas,
E d'um ou d'outro, em quartos estucados,
Ou entre a rama
dos papeis pintados,
Reluzem, n'um almoço, as porcelanas.
Como é saudavel ter o seu conchego,
E a sua vida facil! Eu descia,

Sem muita pressa, para o meu emprego,
Aonde agora quasi sempre
chego
Com as tonturas d'uma apoplexia.
E rota, pequenina, aramafada,
Notei de costas uma rapariga,
Que no
xadrez marmoreo d'uma escada,
Como um retalho de horta
agglomerada,
Pousára, ajoelhando, a sua giga.
E eu, apesar do sol, examinei-a:
Poz-se de pé: resoam-lhe os
tamancos;
E abre-se-lhe o algodão azul da meia,
Se ella se curva,
esguedelhada,
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