O Livro de Cesário Verde | Page 5

Cesario Verde
julgue um velho. O teu sorriso é falso;
«Mas quando
tentas rir parece então, meu bem,
«Que estão edificando um negro
cadafalso
«E ou vae alguem morrer ou vao matar alguem!
«Eu vim--não sabes tu?--para gosar em maio,
«No campo, a
quietação banhada de prazer!
«Não vês, ó descórado, as vestes com
que saio,
«E os jubilos, que abril acaba de trazer?
«Não vês como a campina é toda embalsamada
«E como nos alegra
em cada nova flor?
«E então porque é que tens na fronte consternada

«Um não sei quê tocante e enternecedor?
E eu só lhe respondia:--«Escuta-me. Conforme
«Tu vibras os crystaes
da bocca musical,
«Vae-nos minando o tempo, o tempo--o cancro
enorme
«Que te ha de corromper o corpo de vestal.
«E eu calmamente sei, na dôr que me amortalha,
«Que a tua
cabecinha ornada á Rabagas,
«A pouco e pouco ha de ir tornando-se
grisalha
«E em breve ao quente sol e ao gaz alvejará!
«E eu que daria um rei por cada teu suspiro,
«Eu que amo a mocidade
e as modas futeis, vans,
«Eu morro de pezar, talvez, porque prefiro

«O teu cabelo escuro ás veneraveis cans!»
HUMILHAÇÕES
(De todo o coração--a Silva Pinto)
Esta aborrece quem é pobre. Eu, quasi Job,
Acceito os seus desdens,
seus odios idolatro-os;
E espero-a nos salões dos principaes theatros,
Todas as noites, ignorado e só.

Lá cança-me o ranger da seda, a orchestra, o gaz;
As damas, ao
chegar, gemem nos espartilhos,
E emquanto vão passando as
cortezans e os brilhos,
Eu analyso as peças no cartaz.
Na representação d'um drama de Feuillet,
Eu aguradava, junto à porta,
na penumbra,
Quando a mulher nervosa e van que me deslumbra
Saltou soberba o estribo do coupé.
Como ella marcha! Lembra um magnetisador.
Roçavam no veludo as
guarnições das rendas;
E, muito embora tu, burguez, me não
entendas,
Fiquei batendo os dentes de terror.
Sim! Por não podia abandonal-a em paz!
Ó minha pobre bolsa,
amortalhou-se a idéa
De vel-a aproximar, sentado na platéa,
De tel a n'um binoculo mordaz!
Eu occultava o fraque usado nos botões;
Cada contratador dizia em
voz rouquenha:
--Quem compra algum bilhete ou vende alguma
senha?
E ouviam-se cá fóra as ovações.
Que desvanecimento! A perola do Tom!
As outras ao pé d'ella imitam
as bonecas;
Tem menos melodia as harpas e as rabecas,
Nos grandes espetaculos do Som.
Ao mesmo tempo, eu não deixava de a abranger;
Vi-a subir, direita, a
larga escadaria
E entrar no camarote. Antes estimaria
Que o chão se abrisse para me abater.

Saí; mas ao sair senti-me atropellar.
Era um municipal sobre um
cavallo. A guarda
Espanca o povo. Irei-me; e eu, que detesto a farda,
Cresci com raiva contra o militar.
De subito, fanhosa, infecta, rota, má,
Pôz-se na minha frente uma
velhinha suja,
E disse-me, piscando os olhos de coruja:
--Meu bom
senhor! Dá-me um cigarro? Dá?...
RESPONSO
I
N'um castello deserto e solitario,
Toda de preto, ás horas silenciosas,

Envolve-se nas pregas d'um sudario
E chora como as grandes
criminosas.
Podesse eu ser o lenço de Bruxellas
Em que ella esconde as lagrimas
singellas.
II
E loura como as doces escocezas,
D'uma belleza ideal, quasi indecisa;

Circumda-se de luto e de tristezas
E excede a melancolica
Artemisa.
Fosse eu os seus vestidos afogados
E havia de escutar-lhe os seus
peccados.
III
Alta noite, os planetas argentados
Deslisam um olhar macio e vago

Nos seus olhos de pranto marejados
E nas aguas mansissimas do lago
Podesse eu ser a lua, a lua terna,
E faria que a noite fosse eterna.
IV

E os abutres e os corvos fazem giros
De roda das ameias e dos pégos,

E nas salas resoam uns suspiros
Dolentes como as supplicas dos
cegos.
Fosse eu aquellas aves de pilhagem
E cercara-lhe a fronte, em
homenagem.
V
E ella vaga nas praias rumorosas,
Triste como as rainhas
desthronadas,
A contemplar as gondolas airosas,
Que passam, a
giorno illuminadas.
Podesse eu ser o rude gondoleiro
E alli é que fizera o meu cruzeiro.
VI
De dia, entre os veludos e entre as sedas,
Murmurando palavras
afflictivas,
Vagueia nas umbrosas alamedas
E acarinha, de leve, as
sensitivas.
Fosse eu aquellas arvores frondosas
E prendera-lhe as roupas
vaporosas.
VII
Ou domina, a rezar, no pavimento
Da capella onde outr'ora se ouviu
missa,
A musica dulcissima do vento
E o sussuro do mar, que
s'espreguiça.
Podesse eu ser o mar e os meus desejos
Eram ir borrifar-lhe os pés,
com beijos.
VIII
E ás horas do crepusculo saudosas,
Nos parques com tapetes
cultivados,
Quando ella passa curvam-se amorosas
As estatuas dos

seus antepassados.
Fosse eu tambem granito e a minha vida
Era vêl-a a chorar
arrependida.
IX
No palacio isolado como um monge,
Erram as velhas almas dos
precítos,
E nas noites de inverno ouvem-se ao longe
Os lamentos
dos naufragos afflictos.
Podesse eu ter tambem uma procella
E as lentas agonias ao pé d'ella!
X
E ás lages, no silencio dos mosteiros,
Ella conta o seu drama
negregado,
E o vasto carmesim dos resposteiros
Ondula como um
mar ensanguentado.
Fossem aquellas mil tapeçarias
Nossas mortalhas quentes e sombrias.
XI
E assim passa, chorando, as noites bellas,
Sonhando nos tristes
sonhos doloridos,
E a reflectir nas gothicas janellas
As estrellas dos
ceus desconhecidos.
Podesse eu ir sonhar tambem comtigo
E ter as mesmas pedras
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