O Livro de Cesário Verde | Page 4

Cesario Verde
n'isso a desgoste ou desenfade,
Quantas vezes, seguindo-lhe
as passadas,
Eu vejo-a, com real solemnidade,
Ir impondo toilettes
complicadas!...
Em si tudo me attrae como um thesoiro:
O seu ar pensativo e senhoril,

A sua voz que tem um timbre de oiro
E o seu nevado e lucido
perfil!
Ah! Como m'estontêa e me fascina...
E é, na graça distincta do seu
porte,
Como a Moda superflua e feminina,
E tão alta e serena como
a Morte!...
Eu hontem encontrei-a, quando vinha,
Britannica, e fazendo-me
assombrar;
Grande dama fatal, sempre sósinha,
E com firmeza e
musica no andar!
O seu olhar possue, n'um fogo ardente,
Um archanjo e um demonio a
illuminal-o;
Como um florete, fere agudamente,
E afaga como o
pello d'um regalo!
Pois bem. Conserve o gelo por esposo,
E mostre, se eu beijar-lhe as
brancas mãos,
O modo diplomatico e orgulhoso
Que Anna
d'Austria mostrava aos cortezãos.
E emfim prosiga altiva como a Fama,
Sem sorrisos, dramatica,
cortante;
Que eu procuro fundir na minha chamma
Seu ermo
coração, como um brilhante.
Mas cuidado, milady, não se afoite,
Que hão-de acabar os barabaros
reaes;
E os povos humilhados, pela noite,
Para a vingança aguçam
os punhaes.
E um dia, ó flor do Luxo, nas estradas,
Sob o setim do Azul e as

andorinhas,
Eu hei-de ver errar, allucinadas,
E arrastando
farrapos--as rainhas!
SEPTENTRIONAL
Talvez já te esquecesses, ó bonina,
Que viveste no campo só
commigo,
Que te osculei a bocca purpurina,
E que fui o teu sol e o
teu abrigo.
Que fugiste commigo da Babel,
Mulher como não ha nem na
Circassia,
Que bebemos, nós dois, do mesmo fel,
E regámos com
prantos uma acacia.
Talvez já te não lembres com desgosto
D'aquellas brancas noites de
mysterio,
Em que a lua sorria no teu rosto
E nas lages que estão no
cemiterio.
Quando, á brisa outoniça, como um manto,
Os teus cabellos d'ambar
desmanchados,
Se prendiam nas folhas d'um acantho,
Ou nos bicos
agrestes dos silvados,
E eu ia desprendel-os, como um pagem
Que a cauda solevasse aos
teus vestidos;
E ouvia murmurar á doce aragem
Uns delirios d'amor,
entristecidos;
Quando eu via, invejoso, mas sem queixas,
Pousarem borbeletas
doudejantes
Nas tuas formosissimas madeixas,
D'aquellas côr das
messes lourejantes,
E no pomar, nós dois, hombro com hombro,
Caminhavamos sós e de
mãos dadas,
Beijando os nossos rostos sem assombro,
E colorindo
as faces desbotadas;
Quando ao nascer d'aurora, unidos ambos
N'um amor grande como
um mar sem praias,
Ouviamos os meigos dithyrambos,
Que os
rouxinoes teciam nas olaias,

E, afastados da aldeia e dos casaes,
Eu comtigo, abraçado como as
heras,
Escondidos nas ondas dos trigaes,
Devolvia-te os beijos que
me déras;
Quando, se havia lama no caminho,
Eu te levava ao collo sobre a
greda,
E o teu corpo nevado como o arminho
Pesava menos que um
papel de sêda...
E foste sepultar-te, ó seraphim,
No claustro das Fieis emparedadas,

Escondeste o teu rosto de marfim
No véu negro das freiras
resignadas.
E eu passo, tão calado como a Morte,
N'esta velha cidade tão sombria,

Chorando afflictamente a minha sorte
E prelibando o calix da
agonia.
E, tristissima Helena, com verdade,
Se podéra na terra achar
supplicios,
Eu tambem me faria gordo frade
E cobriria a carne de
cilicios.
MERIDIONAL
Cabellos
Ó vagas de cabello esparsas longamente,
Que sois o vasto espelho
onde eu me vou mirar,
E tendes o crystal d'um lago refulgente
E a
rude escuridão d'um largo e negro mar;
Cabellos torrenciaes d'aquella que m'enleva,
Deixae-me mergulhar as
mãos e os braços nús
No barathro febril da vossa grande treva,
Que
tem scintillações e meigos ceos de luz.
Deixae-me navegar, morosamente, a remos,
Quando elle estiver
brando e livre de tufões,
E, ao placido luar, ó vagas, marulhemos
E
enchamos de harmonia as amplas solidões.

Daixae-me naufragar no cimo dos cachopos
Occultos n'esse abysmo
ebanico e tão bom
Como um licor rhenano a fermentar nos copos,

Abysmo que s'espraia em rendas de Alençon!
E ó magica mulher, ó minha Inegualavel,
Que tens o immenso bem
de ter cabellos taes,
E os pisas desdenhosa, altiva, imperturbavel,

Entre o rumor banal dos hymnos triumphaes;
Consente que eu aspire esse perfume raro,
Que exhalas da cabeça
erguida com fulgor,
Perfume que estontêa um millionario avaro
E
faz morrer de febre um louco sonhador.
Eu sei que tu possues balsamicos desejos,
E vaes na direcção
constante do querer,
Mas ouço, ao ver-te andar, melodicos harpejos,

Que fazem mansamente amar e elanguescer.
E a tua cabelleira, errante pelas costas,
Supponho que te serve, em
noites de verão,
De flaccido espaldar aonde te recostas
Se sentes o
abandono e a morna prostração.
E ella hade, ella hade, um dia, em turbilhões insanos
Nos rolos
envolver-me e armar-me do vigor
Que antigamente deu, nos circos
dos romanos,
Um oleo para ungir o corpo ao gladiador.

Ó mantos de veludo esplendido e sombrio,
Na vossa vastidão posso
talvez morrer!
Mas vinde-me aquecer, que eu tenho muito frio
E
quero asphyxiar-me em ondas de prazer.
IRONIAS DO DESGOSTO
«Onde é que te nasceu»--dizia-me ella ás vezes--
«O horror calado e
triste ás cousas sepulcraes?
«Porque é que não possues a verve dos
Francezes
«E aspiras, em silencio, os frascos dos meus saes?

«Porque é que tens no olhar, moroso e persistente,
«As sombras d'um
jazigo e as fundas abstracções,
«E abrigas tanto fel no peito, que não
sente
«O abalo feminil das minhas expansões?
«Ha quem te
Continue reading on your phone by scaning this QR Code

 / 19
Tip: The current page has been bookmarked automatically. If you wish to continue reading later, just open the Dertz Homepage, and click on the 'continue reading' link at the bottom of the page.