O Livro de Cesário Verde | Page 3

Cesario Verde
Vós todos, que o amastes,
sabei que elle está resignado--o nosso querido morto impassivel!
E n'uma dessas tardes, alguns dias depois da sua morte, eu aproximei
da porta de ferro a minha pobre cabeça esbrazeada e olhei para dentro
do jazigo, involuntariamente; e então, como quer que eu visse lá a
dentro do jazigo alguns caixões arrumados, e como eu acertasse em
descobrir o caixão do Cesario, os soluços despedaçaram-se contra a
minha garganta, n'uma afflicção immensa e cruel. E foi então que a voz
rouca e enfraquecida do Cesario--lembram-se da voz
d'elle?--pronunciou distinctamente lá a dentro do caixão:--«Sê natural,
meu amigo; sê natural!»
Era a voz do Cesario; era a sua voz tremente e doce, ó meu sagrado
horror inconsciente! Debrucei-me contra a porta do jazigo e suppliquei
n'uma angustia:--«Fala! Dize! Falla, outra vez, meu amigo!» Não se
reproduziu o doloroso encanto. Apenas uma especie de marulho brando,
um arrastar de folhagem resequida--e o morto na paz da Morte!
Vão já decorridos dez annos sobre um periodo de alguns mezes serenos
da minha via dolorosa. Eu viera a conquistar a certeza de que não havia

luz misericordiosa para a noite que me vem acompanhando e
torturando os olhos ávidos, desde o berço á sepultura redemptora.
Cheguei aqui, á cidade maldita da minha primeira hora e trazia o sonho
de uma aurora pacifica de vida nova no meu pobre espirito illudido. A
aurora fez-se com um desabamento de esperanças: a crueldade bestial
que se debruçára sobre o meu primeiro dia não estava arrependida, nem
fatigada: a perseguição renasceu. E quando eu, no singular desespero
dos esmagados em sua crença, pensei na Morte como no abrigo
antecipado--querido abrigo inevitavel!--a voz de Cesario foi a voz
evocadora para a continuação do soffrimento --do soffrimento
amparado e protegido...
Protegido! A protecção foi a maior da grande alma serena para a pobre
alma abatida: foi de lagrimas que se confundiram com as minhas
lagrimas; foi aquelle sorriso triste de resignação, consagrado ás minhas
amarguras,--que para o Cesario não foram mysteriosas; foi o aperto de
mão robusto, na vertigem do combate; foi a voz firme e severa na hora
dos desfallecimentos; foi o reflexo permanente que a minha angustia
encontrou na sua.
Ah, santo! Ah, meu santo! Ah, meu puro e meu grande! Ah, meu forte!
Vae-se na corrente, desfallecido, se nos não troveja nos ouvidos a voz
reanimadora! Vae-se na corrente,--que o sei eu! Mas tu, depois do grito
salvador, tinhas um applauso vibrante lá do fundo da tua grandeza e da
tua generosidade. E tu sabias que me salvara a tua mão, a tua palavra, a
tua alma de justo, a tua face que eu não quizera vêr, contrahida e severa,
retraindo-se perante o quadro da minha fraqueza! Tu bem o
sabias,--forte, bom, generoso, nobre, sempre bom--e todavia sempre
justo!
A crise mais feroz atravessei-a, pois, abrigado,--abrigado pela sua voz
amiga. Eu tive de luctar com a lenda de rebellião, com a desconfiança
dos homens praticos, com o odio dos pequeninos malvados offendidos
em seus orgulhos e desmascarados em suas hypocrisias:
conseguintemente, com a suppressão do trabalho,--do pão,--com a
calumnia, com a intriga, com todas as armadilhas á minha colera, com
todas as ciladas á minha fé... Ah, perdidos em paiz de Cafres! Mal

conceberieis o horror de uma lucta como aquella, de todos os dias de
dez annos, em paiz de conta aberta no bazar da Civilisação!
Hoje, o meu santo amigo está alli em baixo, na sua morada nova,
esperando... Espera que eu vá dizer-lhe dos horisontes novos abertos á
consciencia dos justos; espera que eu vá dizer-lhe as victorias da Justiça
absoluta--da Justiça illuminada e serena;--espera que eu vá dizer-lhe as
victorias do Trabalho, da Razão, da Sciencia, da Sinceridade, do Amor:
os homens reconciliados, esclarecidos, a Natureza convertida em
Progresso, Deus explicado, o Futuro illuminado, a Vida possível, A
Mulher fortalecida, o Homem abrandado, as luctas supprimidas, o
concerto da Terra desentranhando-se em harmonias reconhecidas, a
Bondade convertida em nórma, os Direitos e os Deveres supprimidos
pela Igualdade: os seus sonhos, a sua fé, o seu horisonte, o seu amor!
Está alli em baixo, esperando... Eu, mensageiro triste, não saberei
dizer-lhe o ascendêr dos espiritos, e só poderei levar-lhe no meu
abatimento a demonstração da minha pouca fé, aggravada pela
espantosa amargura d'estes ultimos dias,--d'estas ultimas horas. As
visões do poeta hão de emmurchecer confundidas com as ultimas rozas
que a minha pobre mão tremente e desfallecida lhe deporá no tumulo, e
os restos da minha fé hão-de misturar-se com o pó accumulado á
entrada do seu tumulo pelo Nordéste--menos frio do que a minha alma
succumbida!

Silva Pinto.
Os versos
I
CRISE ROMANESCA
DESLUMBRAMENTOS
Milady, é perigoso contemplal-a,
Quando passa aromatica e normal,


Com seu typo tão nobre e tão de sala,
Com seus gestos de neve e
de metal.
Sem que
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