O Livro de Cesário Verde | Page 2

Cesario Verde
aquelle artista delicado, quando aquelle poeta de
primeira grandeza julgava em raros momentos sacrificar a Arte aos
seus gostos de lavrador e de homem pratico, succedia que as cousas do
campo, da vida pratica assimilavam a fecundante seiva artistica do
poeta: e então dos fructos alevantavam-se aromas que disputavam fóros
de poesia aos aromas das flôres. O mesmo sopro bondoso e potente
agitava e fecundava os milharaes e as violetas e os trigaes e as rosas! A
bondade summa está no poeta,--mais visivel, pelo menos, do que em
Deus.
Artista--e de alta plana! Eu pude vêl-o cioso de seus direitos e
reivindicando-os com tanto de ingenuidade quanto de vigor. E pois que
um ligeiro esboço, precedendo mais detido trabalho, estou elaborando
sobre os traços mais salientes d'aquella individualidade, não me
dispensarei d'esta indicripção:
Ha dois mezes escrevia-me Cesario Verde: «O Doutor Sousa Martins
perguntou-me qual era a minha occupação habitual. Eu respondi-lhe
naturalmente: Empregado no commercio. Depois, elle referiu-se á
minha vida trabalhosa que me distrahia, etc. Ora, meu querido amigo, o
que eu te peço é que, conversando com o dr. Sousa Martins, lhe dês a
perceber que eu não sou o sr. Verde, empregado no commercio. Eu não
posso bem explicar-te; mas a tua amizade comprehende os meus
escrupulos: sim?...»
E eu fui á beira de Sousa Martins e perguntei-lhe se o poeta Cesario
Verde podia ser salvo. O grande e illustre medico tranquilisou-me --e
apunhalou-me em pleno peito:--Que o poeta Cesario Verde estava
irremediavelmente perdido!
Meu poeta! Meu amigo! Tu estavas condemnado no tribunal superior,
quando eu te mentia e ao publico e a mim proprio: estavas condemnado,
meu santo! Mas podia viver tranquillo o teu orgulho de artista: o teu
medico sabia que o poeta Cesario Verde eras tu proprio, meu pallido
agonisante illudido!

A esthesia, o processo artistico e a individualidade d'este admiravel e
originalissimo poeta merecem á Critica independente uma attenção
desvelada. Eu não hesito em vincular o meu nome á promessa de um
tributo que a obra de Cesario Verde está reclamando.

E todavia, não póde o meu espirito evadir-se á idéa consoladora de que
é um sonho isto que o entenebrece! Não pódes evadir-te, ó meu espirito
amargurado! mas eu vou libertar-te para a dôr!
Foi ás cinco da tarde--ainda agora. Caía o sol a prumo sobre a estrada
do Lumiar e nós vinhamos arrastando a nossa miseria,--nós os vivos; o
morto arrastava a sua indifferença. Chegámos, com duas horas de
amargura, alli ao porto de abrigo e de descanço. Veio o ceremonial
tragico, o latim, o encerramento. Caso de uma eloquencia terrivel:
Entre algumas dezenas de homens não houve uma phrase
indifferente--e em dado momento explosiram soluços n'um
enternecimento que ageitava a loira cabeça do cadaver lá dentro do
caixão--como as mãos da mãe lh'a ageitaram infantil, no travesseiro, ha
vinte e quatro annos, e moribunda ha vinte e quatro horas!
Eram sete horas da tarde, ó minha alma triste! Eu fui-me a chorar
velhas lagrimas de gelo, avocadas por lagrimas de fogo recemnascidas.
Fui-me por entre os tumulos, a pedir ao meu Deus de ha trinta annos
que que me désse força, que me désse força nova,--pois que se
prolonga o captiveiro! E a sós, caminhando por entre os tumulos, ao
cair da noite, pareceu-me comprehender que nós recebemos força nova
em cada nova dôr, para soffrermos de novo--do mesmo modo que o
alcatruz de uma nóra se despeja para encher-se, para despejar-se --sem
saber porque...
20 de Agosto

A morada nova do Cesario é de pedra e tem uma porta de ferro, com
um respiradouro em cruz;--rua n.º 6 do cemiterio dos Prazeres. Á porta
está um arbusto da familia dos cyprestes--um brinde ao meu querido

morto. Eu offerecera uma palmeira que o vento esgarçou ao terceiro dia,
e tive de escolher uma especie resistente, cá da minha raça--funebre e
resistente. Está verdejante e vigorosa a pequenina arvore, e de longe é
uma sentinella perdida da minha doce amizade religiosa. De longe vou
já perguntando á nossa arvore:--Está bom o nosso amigo?... E ella
inclina os pequeninos trocos, com a gravidade do cypreste:--Bem; não
houve novidade em toda a noite...
É que eu vou pelas tardes visital-o; e saber como elle passou é todo um
meu cuidado, como é toda a minha alegria o bem-estar d'aquella hora
em que não ha risos. Não fomos risonhos--o Cesario e eu. As nossas
horas de convivencia foram tristes e severas. Depois da morte do
Cesario eu deixei de viver nos dominios onde elle sentira consolações,
alentos, esperanças, onde elle imaginára renascimentos, horisontes,
claridades novas. Nunca mais publiquei uma palavra que se lhe não
consagrasse--ao meu querido morto. Em face d'aquelle cadaver eu senti
alastrar-se no meu pobre ser fatigado o bem-amado desprezo da vida. O
meu santo está alli,--está resignado: é tudo.
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