O Arrependimento | Page 4

Camilo Castelo Branco
facto, porque,
impaciente por satisfazer os credores de seu irmão, pai de Roberto,
tinha vendido tudo o que possuia em Portugal.
O golpe foi forte, mas ainda assim não o foi bastante para poder
subjugar a coragem do bom e respeitavel velho, mostrando-se

Valentina n'esta conjunctura, digna filha d'um tal pai.
Renunciando heroicamente ás commodidades da vida, em que até então
tinham vivido, foram habitar, em um bairro mais afastado da cidade,
uma pequena casa, na qual soffreram privações diarias e penosas,
tratando sempre d'obter alguns recursos para a sua subsistencia, mesmo
em trabalhos mal retribuidos.
Valentina, que Deus tinha dotado de bom gosto, e bastante habilidade,
principiou a trabalhar para uma modista, a qual satisfeita com os seus
primeiros trabalhos, lh'os deu em seguida mais delicados e por isso
melhor retribuidos, o que foi para elles uma grande felicidade, e que
assim lhes proporcionou meios licitos de pagarem regularmente o seu
aluguel, e de já não receiarem tanto nem o frio, nem a fome.
Valentina ia entregar a sua obra á modista, a qual satisfeita com ella lhe
dava sempre mais, e muitas vezes mais do que a que ella podia fazer. A
uma crise terrivel tinha-se seguido uma abastança mediocre, que era
por isso uma felicidade mais agradavel e estimada.
Decorreram assim dous annos.
Um dia, em que Valentina estava só, lhe entregou o carteiro uma carta,
e qual não foi a sua surpreza quando reconheceu a letra de seu primo.
Roberto contava n'esta carta tudo o que tinha passado, desde o
momento em que o vimos no hotel em Lisboa preparando-se para
escamotear seu tio. Fulminado pela vista d'Emilio da Cunha tinha
recobrado os sentidos para na fuga se salvar ás imprecações
d'indignação do velho. Chegou offegante ao Terreiro do Paço, onde se
sentou, ou melhor se deixou cahir n'um dos assentos de pedra, que alli
se acham, e assim esteve por muito tempo, com a cabeça escondida
entre as mãos, mergulhado em acerbas e crueis reflexões.
Experimentou ou sentiu dentro em si uma completa revolução; o seu
procedimento indigno e infame se lhe apresentou em toda a sua nudez e
hediondez; teve horror de si mesmo e por um instante pensou em
suicidar-se; mas com o arrependimento entraram-lhe no coração

sentimentos mais generosos. Lembrou-se que, tendo d'ora avante uma
conducta honrosa e illibada, ainda poderia chegar a fazer esquecer os
seus erros passados, e reanimado por esta feliz lembrança, que o seu
anjo bom lhe tinha suggerido, levantou-se resoluto a trabalhar para a
sua rehabilitação, e a não descançar sem a ter chegado a alcançar.
A occasião favoravel não se fez esperar muito, por que um capitão
d'um navio mercante, que estava apparelhando para a California, lhe
concedeu passagem gratuita, mediante os seus serviços e o seu trabalho
na viagem.
Aportou Roberto á California e sorrindo-lhe a fortuna, em lugar de se
embrenhar no jogo, arriscando assim as suas economias, fundou um
estabelecimento, que ia prosperando, faltando unicamente para a sua
felicidade se tornar completa, o obter o perdão de seu tio, e a esperança
de poder tornar a vêr sua prima, cuja imagem tinha constantemente na
idéa, e o sustentava e animava n'esta nova estrada de trabalho e ordem,
de que não pensava mais em se desviar.
Eis aqui em resumo o que continha a carta que Roberto dirigiu a sua
prima.
Valentina muito commovida, mas gostosa e alegre por ter de dar tão
grata noticia a seu querido pai, esperava anciosa a sua volta.
Mal lhe deu tempo de sentar-se, ia logo a contar-lhe o succedido, mas,
Emilio da Cunha a deteve, apenas tinha pronunciado a primeira palavra.
Valentina insistiu, mas o velho levantou-se com a maldição nos labios;
ella lançou-se-lhe de joelhos aos pés, chorou, supplicou, mas elle a tudo
ficou impassivel e inflexivel.
Valentina consternada respondeu á carta de seu primo descrevendo-lhe
o succedido, e a inutilidade de seus esforços; mas para o não desanimar
promettia-lhe de os renovar, e que os repetiria até que chegasse a mover
seu pai á commiseração e piedade, de que não desesperava. A carta
continha tambem a descripção de todos os successos, que se tinham
dado desde que Roberto tinha desapparecido; a decadencia de Emilio
da Cunha, a pobresa em que tinham vivido em quanto que o seu

trabalho mal retribuido lhe dava parcos meios de subsistencia, e o
melhoramento de sua posição, finalmente continha tambem algumas
palavras d'exhortação e amisade.
A situação de Emilio da Cunha e sua filha soffreu, passado algum
tempo, uma modificação muito mais inesperada, do que a que se havia
seguido ao aniquilamento da sua fortuna.
Emilio da Cunha foi chamado a casa d'um capitalista, aonde lhe
entregaram 20 contos de reis de que um anonymo lhe mandava dar
posse a titulo de restituição. D'onde tinha vindo este dinheiro?
Emilio da Cunha pensou muito
Continue reading on your phone by scaning this QR Code

 / 9
Tip: The current page has been bookmarked automatically. If you wish to continue reading later, just open the Dertz Homepage, and click on the 'continue reading' link at the bottom of the page.