O Arrependimento | Page 3

Camilo Castelo Branco
e a liquidação e arrecadação da heranca a um procurador,
e embarcar-se no primeiro paquete, que seguisse viagem para Portugal.
Que se tinha porém passado no Porto, durante este tempo?
É o que lhe vou contar, meu visinho, se ainda tiver paciencia para me
ouvir, me disse D. Mafalda, e o que vou fazer ás minhas leitoras, se
ellas quizerem ter a mesma paciencia de me lêr.
Roberto, separado de sua prima, aborrecido e dominado pela priguiça,
fugiu um bello dia da casa onde se achava hospedado, foi procurar, e
infelizmente encontrou, os seus antigos companheiros da vadiagem,
que tinham quasi todos seguido a estrada do vicio e do crime.
Arrastaram portanto comsigo o desventurado Roberto para esse
despenhadeiro, na baixa do qual se encontra a escoria da sociedade.
Roberto tinha por companheiros habituaes homens criminosos, de cara
sinistra, maneiras brutaes, linguagem grosseira e vestidos esfarrapados,
n'uma palavra mendigos, ou ladrões. Adoptou-lhe portanto os costumes
as maneiras e as maximas, e quem o visse emmagrecido pela
devassidão, com os vestidos em desalinho, os cabellos eriçados,

tomal-o-ia por um bandido de trinta annos, quando elle não tinha mais
que dezenove incompletos. Valentina, pelo contrario, tinha crescido em
corpo, belleza, espirito, talento e virtudes.
Conduzi-o do Porto ao Rio de Janeiro, e do Rio de Janeiro ao Porto,
agora, querendo-me seguir, leval-o-hei a Lisboa, onde se passa um
pequeno episodio d'esta muito veridica historia.
De bordo d'um paquete inglez, chegado dos portos do Brazil, tinha
desembarcado um passageiro, que se dirigiu a um hotel para descançar,
e ahi passar até ao dia seguinte, em que devia seguir viagem para o
Porto, na mala-posta, a fim de se vir unir a seus filhos, que estava
ancioso por abraçar e apertar contra o coração. Julgo desnecessario o
dizer-lhe, pois me parece já o adivinhou, que este viajante era Emilio
da Cunha, que se considerava feliz por pisar o solo da sua patria, que
tanto amava, e onde estava tudo o que elle mais presava n'este mundo.
Logo que no hotel lhe prepararam o quarto e tomou uma pequena
refeição, deitou-se e adormeceu, embalado por sonhos felizes.
No dia seguinte ainda o sol mal tinha despontado, já subia pela escada
do hotel e entrava no corredor commum, sobre o qual deitavam uma
duzia de portas de quartos, um homem de má catadura. Era um d'estes
cavalheiros d'industria, a qual consiste em entrar, sob qualquer
pretexto, de manhã cedo nos hoteis, e aproveitar-se do primeiro quarto
que encontram aberto para empalmarem destramente um relogio, ou
uma mala, se o acordar do hospede ou locatario do quarto, os não
obriga a retirar-se de mãos vazias, desculpando-se de que se tinham
enganado na porta.
No andar, vacillante, e como desconfiado, do cavalheiro d'industria se
reconhecia facilmente, que era um noviço, que ia tentar os seus
primeiros ensaios, ou que ia fazer a sua primeira escamoteação.
Depois de ter estado por bastante tempo em lucta com a sua
consciencia, e irresoluto se devia ou não penetrar no quarto de que a
porta se achava meia cerrada, metteu primeiro a cabeça, depois uma
perna, e por ultimo todo o corpo; mas fazendo algum ruido com este
ultimo movimento, o hospede, que estava deitado, acordou, e virando

rapidamente a cabeça, Roberto, por que o cavalheiro d'industria era
elle, encarou com seu tio Emilio da Cunha, ficou estupefacto e como
fulminado por um raio.
N'esse mesmo dia de tarde Emilio da Cunha tomou lugar no caminho
de ferro até ao Carregado, e ahi na mala-posta até ao Porto, onde trinta
e seis horas depois se achava nos braços de sua querida filha Valentina,
que immediatamente tinha ido procurar ao collegio.
--Tu sahes já, já do collegio, minha filha--lhe diz Emilio da
Cunha--para retomares, e nunca mais deixares, o teu lugar a meu lado.
--Que felicidade--exclamou Valentina toda alegre e folgazã--que vida
socegada e feliz não vamos passar todos tres, não é assim meu querido
pai, por que Roberto tambem vai para a nossa companhia?
--Roberto, morreu--respondeu Emilio da Cunha com rosto severo, e voz
soturna.--Não quero que me falles mais n'elle, entendes Valentina?
Valentina admirada da resposta, ainda fez diversas perguntas a seu pai,
mas a todas ellas não obteve outra resposta, senão a completa
prohibição de nunca mais lhe fallar em Roberto.
Ainda porém não tinha Emilio da Cunha soffrido todas as provações,
que Deus lhe destinára. Haviam decorrido seis mezes desde que tinha
chegado do Rio de Janeiro, quando recebeu a participação de que o
procurador, que ficára encarregado da liquidação e arrecadação da
herança, tinha cumprido a sua missão, mas que, depois de ter
arrecadado a somma importante, que produzira a mesma herança, tinha
desapparecido, sem que as pesquizas feitas para se descobrir o lugar de
seu refugio, tivessem dado o desejado resultado.
Emilio da Cunha ficou completamente arruinado por este
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