O Arrependimento | Page 5

Camilo Castelo Branco
naturalmente, que o procurador que o
tinha roubado, mortificado pelo remorso, e querendo socegar um pouco
a sua consciencia, lhe tinha mandado entregar aquella quantia, como
uma parte da restituição, que lhe tinha a fazer. Valentina estava muito
longe de concordar com a opinião de seu pai, mas nem por isso teve a
franqueza de lh'o declarar, nem lhe dar a entender qual era a sua.
Qual das duas opiniões era a verdadeira, é o que nos não importa saber,
o que se sabe é que a abastança ou decencia tinha reentrado em casa
d'Emilio da Cunha, e as idéas do digno e honrado velho, foram-se
tornando mais brandas sob a influencia do bem-estar.
Foi elle proprio que em um dia fallou primeiro a Valentina em seu
primo Roberto, e ella não perdendo esta occasião tão propicia, que se
lhe offerecia, advogou por muito tempo, com calor e eloquencia, a
causa de seu primo. Emilio da Cunha deixou-a fallar como e todo o
tempo que ella quiz, sem lhe dar a mais pequena resposta, nem lhe
replicar a cousa alguma.
Estaria ou não convencido?
A pergunta não tinha muito facil resposta, mas pelo menos tinha ouvido
sem colera e com socego as allegações a favor de seu sobrinho, o que já
era um bom indicio da mudança que n'elle se havia operado.
Valentina, contente e satisfeita com o resultado do seu primeiro

commettimento, escreveu immediatamente a seu primo informando-o
do que havia, e a esta carta seguiram-se outras muitas, noticiando-lhe
sempre algum novo passo dado na estrada da reconciliação.
Aconteceu um dia que Emilio da Cunha, no meio d'uma conversa, que
tinha seguido n'um objecto mui diverso, parasse precipitadamente para
dizer a sua filha:
--Tu acreditas sinceramente no arrependimento de teu primo?
--Oh! sim, meu pai--se apressou em responder Valentina.
--Queira Deus que te não enganes.
Um outro dia acordou d'uma pequena sesta, que se tinha seguido ao
jantar, gritando, como se continuasse uma conversa começada:
--Ah! se Roberto estivesse arrependido realmente, como tu o suppões,
com que prazer e alegria........
Não terminou a phrase, mas a expressão benevola da physionomia de
Emilio da Cunha indicou a Valentina o complemento da idéa.
Isto foi objecto para uma ultima carta a Roberto, a que elle respondeu, e
fechou-se a correspondencia.
Uma manhã Emilio da Cunha achava-se com Valentina em uma
pequena, mas elegante sala, que deitava sobre o jardim--por que elles
tinham deixado a sua pobre morada, trocando-a por outra mais
decente--Emilio da Cunha sentado junto d'uma mesa, sobre a qual se
achava uma magnifica jarra de flôres, olhava sorrindo para Valentina,
que, de pé, junto d'um açafate em que estavam dous pombinhos,
reprehendia, acariciando-o, um d'elles:
--Eis-te aqui, meu bello fugitivo--lhe dizia ella--pensavas que era só
voltar para te ser concedido o perdão, depois de me teres feito soffrer
com a tua ausencia e ingratidão? Muito bem; visto que o teu regresso
prova um arrependimento sincero, perdôo com prazer; não é assim,

paisinho--acrescentou ella com voz meiga e levantando os lindos olhos
com uma expressão de candura para Emilio da Cunha--que se devem
receber os filhos prodigos, que regressam arrependidos e contrictos?
Emilio da Cunha não deu uma palavra, mas rolou-lhe uma lagrima
sobre a face.
N'este momento surprehendeu elle um olhar d'intelligencia, que
Valentina dirigia a alguem, que estava pelo lado detraz da cadeira em
que estava sentado. Voltou-se rapidamente, e soltando um grito,
ouviu-se o nome de Roberto.
Era Roberto realmente. A scena que se seguiu o meu caro visinho
melhor a poderá imaginar, do que eu pintar-lh'a, ou descrever-lh'a.
Roberto voltava honrado e rico. Julgo que já comprehendeu que, para
soccorrer seu tio, elle concebeu e executou o plano da restituição.
D. Mafalda calou-se. Parecia esperar, que eu, convencido pela sua
historia, sanccionasse com o meu voto a doutrina, que ella tinha
expendido antes de começar.
--Ah!--lhe disse eu com admiração sincera--v. exc.ª podia facilmente
escrever um romance.
--Isso quer dizer que me faz a honra de julgar esta minha historia como
producção da minha imaginação e phantasia?
Limitei-me a inclinar-me respeitosamenie, e aqui terminou a nossa
discussão.
No dia seguinte D. Mafalda offereceu-se para me apresentar a um seu
sobrinho, proprietario d'um estabelecimento industrial importante nos
suburbios do Porto. Aceitei gostosa e promptamente. Fui recebido com
extrema bondade e franqueza. O sobrinho de D. Mafalda gosava uma
felicidade digna de ser invejada; era casado com uma mulher, que era
um anjo de belleza e bondade, e tinha um filho o mais lindo e traquinas
que se póde imaginar; o seu estabelecimento florescia e prosperava; o

seu nome figurava entre os principaes e os mais honrados do mundo
commercial e industrial, n'uma palavra nada faltava á sua gloria,
fortuna, e felicidade domestica.
--Que pensa de meu sobrinho?--me perguntou D. Mafalda, quando nos
retiramos.
--Ah! minha senhora, nada mais ambiciono do
Continue reading on your phone by scaning this QR Code

 / 9
Tip: The current page has been bookmarked automatically. If you wish to continue reading later, just open the Dertz Homepage, and click on the 'continue reading' link at the bottom of the page.