Novelas do Minho | Page 5

Camilo Castelo Branco
com a consciencia mais tranquilla que um homicida. Vai tu, se me queres obsequiar, dizer isto aos padrinhos.
Jos�� de Almeida voltou �� noite.
--O Abreu teima em bater se--disse elle--Quer duello de morte, pistolas carregadas e desfechadas �� ponta de len?o.
--Vai declarar aos padrinhos que acceito--deliberou serenamente Jo?o Pacheco.
--Est��s doido?!
--Faze o que te digo.
--Escolhe outra testemunha, em quanto eu vou avisar o regedor--returquiu sorrindo Jos�� de Almeida--eu cuidei que eras um rapaz valente e prudente. N?o te batias, ha pouco, por que as tuas vantagens repugnavam ao cavalheirismo; e acceitas o combate, dada a igualdade que pode dar-se entre dois assassinos estupidamente ferozes!
Pacheco ria-se: e Almeida discorria rasoavelmente.
--Faze o que te digo--repetiu o morgado--Pois tu, crean?a, persuades-te que o Abreu deseja bater-se em taes condi??es? Os covardes tem fantasias d'essas em quanto o desafio procede nas incruentas conferencias dos parlamentarios. Assevera tu ao Alvaro que eu acceitei o combate �� ponta de len?o; e espera o desf��cho.
--Mas supp?e que elle sustenta a palavra!...
--Sustentarei a minha;--e, batendo-lhe no hombro, accrescentou:--Vai socegado. O homem tem mais amor �� vida que �� honra. Ouviste? Se elle propozer o duello �� ponta... de lingua, declara loque n?o acceito.
Os bracharenses, ouvindo a resposta do Almeida, ficaram emba?ados e atonitos. O mais cordato, com o louvavel intento de economisar sangue illustre, ponderou que era uma desgra?a matarem-se dois cavalheiros da primeira nobreza do Minho, e aventou o seguinte:
--Se Jo?o Pacheco lhe desse uma satisfa??o na presen?a das pessoas que ouviram a injuria...
--Satisfa??o... como?--inquiriu o Almeido--Dizer-lhe que n?o o reputa carrasco? A emenda �� peor que o soneto. N?o proponho isso. Deixal-os matarem-se! Morrem gloriosamente. Tanto faz morrer de calculos na bexiga como de uma bala no cora??o. Jo?o Pacheco j�� teve em Lisboa e Madrid quatro duellos de morte, e est�� vivo.
--Parece-me isso extraordinario!--observou maravilhado o braguez, suppondo que no duello de morte era obrigatorio morrer.
--N?o ha nada extraordinario. O estylo estatuido no Codigo da Honra �� que as pistolas, uma sevada de polvora e pelouro, e a outra simplesmente de polvora, sejam sorteadas. Pacheco teve sempre a sorte por si. Mas o nosso caso �� outro. Morrem ambos irremediavelmente.
--E n��s? que hade ser de n��s?--atalhou sobresaltado o filho da outr'ora circumspecta Braga.
--N��s?--respondeu Almeida--praticaremos a rara virtude de nos n?o matarmos. Os senhores fogem para a sua terra e eu para a minha. �� o que legisla o Codigo da Honra. As testemunhas n?o podendo dep?r ��cerca da honra dos afilhados mortos, safam-se a unhas de cavallo. O restante da tragedia pertence ao coveiro.
Um dos padrinhos fez men??o de lavar as m?os e disse:
--Eu c�� da mim...
--�� Pilatos n'este negocio?--perguntou o portuense.
--E dois--respondeu tambem o outro, recordando e recitando tres passagens pezadas de um livro do conselheiro Rodrigues de Bastos a respeito de desafios.
--Em que ficamos?--rematou Jos�� de Almeida--deixe l�� o serm?o.
--Vamos fallar com o Abreu: e ou elle desiste de se bater, ou n��s declinamos a miss?o.
--Pois n?o se demorem, que Jo?o Pacheco j�� est�� escrevendo as suas disposi??es testamentarias.
* * * * *
Com quanto a bravura n?o fosse o predicado mais proeminente do amador de Irene, deu-se n'elle um phenomeno de heroismo que pertence aos milagres do amor. A nova, que os pallidos agentes lhe levaram, apenas o desfalleceu por instantes. A imagem da prima foi-lhe como a vis?o de Pallas aos guerreiros da Grecia de Homero, acoro?oando-lhe alentos sobre naturaes �� sua indole.
--Pois morreremos!--exclamou elle com ar de Leonidas no desfiladeiro das Thermopylas.
--Resolves ent?o morrer?--perguntou um dos padrinhos.
--Que remedio?!
--Arranja outras testemunhas...--intimou o segundo padrinho--N��s temos deliberado abrir m?o d'esta asneira. Se te batesses por um motivo serio, verbi gratia, se o Pacheco te deshonrasse uma irm? ou coisa semelhante, ou te chamasse algum nome injurioso, ladr?o, verbi gratia, ent?o estariamos ao teu lado, e at�� seriamos os primeiros a defender-te com as armas na m?o; ora agora matar-se um homem a troco de uma chala?a que n?o vale dois caracoes, isso �� a bestialidade maior que pode praticar um homem, se n?o est�� doido furioso! L�� que tu, verbi gratia...
--N?o d��s mais raz?es--atalhou Alvaro de Abreu--Procurarei outros padrinhos...
Altercaram at�� ��s dez e meia da noite. Um dos dois bracharenses, que argumentava valentemente com o recheio do verbi gratia, repetiu as sans doutrinas do conselheiro Rodrigues de Bastos, peorando-as na linguagem. O certo foi que a pertinacia do sensato amigo vingou abalar o animo renitente do Abreu, a ponto de lhe incutir por um lado da alma o raciocinio e pelo outro lado o medo.
Entretanto, no quartel do morgado de Val-Escuro occorriam cazos notaveis. Jos�� de Almeida, encontrando ��s onze horas da noite o abbade de Santa Eulalia, que vinha de fazer a partida de voltarete �� morgada de Athey, disse-lhe ao ouvido:
--Os homens matam-se amanh? ao romper da aurora. O sol quando nascer... ver�� dois cadaveres.
O abbade n?o duvidou. A catadura do portuense tinha
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