Novelas do Minho | Page 4

Camilo Castelo Branco
abundancia do cora??o. Eu tambem tive d��ze na sua liberalidade. Estava eu a intalhar um M na casca de um amieiro. Era inicial de uma das cinco Marias que eu amava.
--Esse M, disse elle galhofando, pode significar uma celebrada exclama??o vociferada por Cambronne em Waterloo.
--Prove a exclama??o historica--interveio Jos�� de Almeida, vingando-me com aquelle riso percuciente d'elle.
Todos perceberam, salvante as damas, que n?o conheciam os aromas da historia de Fran?a.
--Que horas s?o?--perguntou enfastiada a morgada Irene.
--Cinco--responderam todos, abrindo os relogios, excepto Jo?o Pacheco.
--Singular caso!--disse elle--tenho este relogio ha doze annos: �� a primeira vez que p��ra, tendo corda. Se o ar sulphurico de Vizella tiver sobre o dono a influencia que tem sobre o relogio, serei obrigado a parar; e parar, diz n?o sei quem, �� morrer.
--Mas �� que tu precizas de corda...--remoqueou Alvaro.
--De corda precizo; de carrasco �� que n?o, contando comtigo--redarguiu Pacheco.
--Apanhe aquelle pi?o �� unha, sr. doutor!--exclamou o abbade de Santa Eulalia.
As duas morgadas riram-se com bastante intelligencia; e o Jos�� de Almeida, golphando tres nov��llos de fumo da pipa do cachimbo turco, regougou:
--Bem boa! bem boa! essa vou escrevel-a...
E tirou a carteira.
Alvaro de Abreu enfiou. As damas fitavam-no de modo que o esporeavam a desforrar-se. O rizo vingativo do abbade torturava o; e, por fim, o silencio de todos era um commum vexame: sentia-se mortificada a gente.
D. Helena da Penha ergueu-se do seu frouxel de junco e relva, dizendo:
--Vamos dar um passeio na ponte.
* * * * *
Todos se debru?aram no parapeito da ponte, menos Alvaro de Abreu, que se retirou �� entrada, pretextando o que quer que fosse.
--O doutor ficou entupido!--disse o abbade--Foi uma embarrila??o bem merecida... Onde se d?o ahi se apanham. Cuidava elle que todos n��s eramos espolinhadoiro do seu espirito!... Sempre com o dedo no gatilho da gra?ola! Uma gra?a atura-se; mas estar sempre com o dente mordaz arreganhado, isso �� proprio dos botequins, em camaradagem de estudantes e banaboias.
--Tem raz?o, sr. abbade--obtemperou D. Helena--mas, a fallar o que �� verdade, o sr. Pacheco respondeu muito forte.
--Acceito a reprehens?o de v. ex.^a--volveu urbanamente o cavalheiro--mas pe?o licen?a para n?o me arrepender. Quem me considera talhado para a corda, n?o se offenda se eu o reputo digno de exercitar o instrumento da forca.
D. Irene exclamou:
--Credo!
Era a express?o espontanea do horror �� palavra forca.
E, espivitando a lingua, continuou saracoteando se:
--N?o gosto d'essas coisas... Estou nervosa... O Alvaro ia pallido e tremulo... Vejam l�� se fazem algum desaguizado por causa d'uma gra?a... Vamos embora, mam?! Estou muito nervosa... veja...
E offerecia o pulso ao abbade.
--Tem febre?--perguntou a m?e alvora?ada ao abbade.
--Est�� agitadinha,--confirmou o abbade, envesgando para n��s os olhos zarolhos de velhacaria--Quer palpar, sr. Jo?o Pacheco?
--N?o percebo de pulso--disse o convidado.
--Com licen?a...--interveio Jos�� de Almeida--Eu vejo--E, tateando o pulso de Irene com o relogio aberto, disse:--Cem pulsa??es por minuto. Isto n?o �� febre... �� amor, minha senhora...
--Boa!--disse a menina retirando a m?o--o sr. Almeida tem lembran?as! O amor sente-se no cora??o, n?o �� no pulso.
--O pulso �� o denunciante do cora??o--retrucou o portuense.--O amor �� o sangue mais apressado.
--Faltava-me ouvir essa!--notou D. Helena jubilosa por ver que a menina j�� sorria.
--Em boa sciencia �� aquillo que diz o sr. Almeida--confirmou o abbade--Effectivamente, o amor accelera a circula??o do sangue.
--Aqui tem o voto de pessoa experiente--disse Almeida.
--Est�� feito...--assentiu o abbade dando �� cabe?a trez ligeiras demonstra??es de consentimento.
--�� muito prendado n?o tem duvida...--volveu ironicamente a viuva do capit?o-m��r de Athey.--Ora, tenham juizo!
--Que remedio, sen?o tel-o, minha senhora!--redarguiu o clerigo pag?o--satyro velho n?o topa dryadas nas florestas.
--Qu��?!--perguntou a senhora que desconhecia os escandalos mythologicos.
--Queria eu dizer, excellentissima senhora! que o juizo em mim, velho de cincoenta annos, n?o se recommenda, lastima-se.
--Como est��s, menina?--perguntou D. Irene �� filha.
--Sobresaltada... Tenho medo de alguma desordem... O primo Alvaro tem t?o m��o genio...
E fez varias visagens.
--Agrade?o a sua compaix?o, minha senhora--occorreu Jo?o Pacheco;--mas pe?o-lhe que empregue a sua sensibilidade mais opportunamente.
* * * * *
Ao impardecer da tarde, Jos�� de Almeida foi procurado na pharmacia da Lameira, onde ent?o florescia um boticario que parecia immortal pelas sandices originaes--e ninguem j�� hoje se lembra d'elle! Este paiz n?o �� para ninguem; desengan��mo-nos.
Era Jo?o Pacheco a chamal-o de parte para lhe dizer:
--Acabo de ser procurado por dois sugeitos de Braga, que se dizem padrinhos do desafio a que sou reptado por parte do Abreu. Respondi-lhes que eu enviaria pessoa com quem se entendessem.
--Estou ��s tuas ordens--condescendeu promptamente Almeida, que era padrinho vitalicio de todos os duellos d'aquelle tempo na sua briosa cidade.--Que arma escolhes? sabre? florete? pistola?...
--Mais devagar--atalhou o morgado de Val-Escuro--O Abreu n?o joga arma nenhuma. O meu mestre de tiro foi o marquez de Niza; de sabre foi o Chico Bellas, e de florete o Petit. Sei pouco; mas sei mais que Alvaro. Se lhe acceito o duello, vou seguro da minha superioridade, e, pouco mais ou menos, n?o sahirei do campo
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