Novelas do Minho | Page 8

Camilo Castelo Branco

psycologicos na enfermidade chronica, chamada o sexo pelas senhoras
de Basto.
A saber:
Irene, admittida aos saráos e passeios das illustres familias da Torre da
Marca, Machados Pindellas, Guedes da Costa, Alentem, Infias e Paço
de Sousa, ouvira motejar de Alvaro, á conta do desafio, por causa das
grutescas arremettidas de esgrima pelo systema obsoleto da cabra cega.
Alguns fidalgos, ás vezes, no meio das salas, sem se resguardarem da
morgadinha, fechavam os olhos e terçavam as bengalas com attitudes
farcistas. As gargalhadas atroavam, e Irene disfarçava o despeito,
perguntando ás visinhas que brinquedo era aquelle. Afinal teve uma
sincera amiga que lhe explicou o libretto d'aquellas pantomimas,
mettendo a rizo o Abreu.
Coincidiu então a chegada do sujeito dos vinte e sete fraques a Vizella,
galhardeando em prendas de sala, e savoir vivre com mulheres, mui
distinctamente. De feito, Jacques Smith, educado em Londres,
enfarinhado nos ademanes francezes, enfronhado em vaidades de
fidalgo que tinha os ossos do seu patriarcha saxonio na Palestina,
elegante e quasi intelligente, formava de tudo isto, reunido aos vinte e

sete fraques e respectivos coletes, uma personalidade capaz de
sensibilisar damas no uso de caldas e amor.
A frescura montezinha da filha do capitão-mór de Athey, a garridice
um tanto canhestra, os seus saltos de ovelha espantadiça, e o fluido do
olhar que ella derramava remirando-o de esconso, escandeceram Smith.
Era atrevido como todos os sujeitos de cerebêllo grande, onde demora a
bossa da amatividade. A lua cheia de junho e julho viu coisas que a
poesia costuma idear nas varandas das Julietas, e que a prosa espreita
em qualquer horta de couve gallega por entre festões de
abobora-menina.
O bacharel Abreu não viu tanto como a casta lua; mas farejou. O rival
tinha o prestigio que esmaga com a superioridade. O coração do
homem trahido abysma-se a chorar na consciencia que diz: «Eu valho
menos que o meu rival». Enfureceu-se, e vozeou rusticidades á prima,
que lh'as escutou como quem as recebe impassivelmente com a
condição de prejurar. Não se desculpou nem carpiu. Aborrecia-o,
porque era irrisorio desde o duello, e porque estava perdida d'amor,
fulminada por Jacques Smith, bom typo da perfeição viril, tirante as
escrofulas cicatrizadas no pescoço.
Alvaro de Abreu foi para a sua aldeia. Jacques voltou em principios de
agosto, com José de Almeida, para a praia da Foz.
Perguntando-lhe Almeida se a morgadinha de Athey passára á historia,
respondeu:
--Pois então!
--Era uma rapariga fresca...--tornou o outro.
--Sim, fresca e indigesta como a melancia.
* * * * *
Em uma gazeta do Porto, de 15 de novembro do mesmo anno de 1851,
lia-se esta correspondencia datada no Arco:

Esta villa soffreu a perda irreparavel de um cavalheiro consummado
em toda a extensão da palavra e representante de uma familia, talvez a
mais illustre das provincias do norte, pois entre os seus avoengos se
conta o grande e immortal Duarte Pacheco Pereira, por antonomasia
o «Achilles lusitano», e o «Leão dos mares».
Hontem de manhã sahira o sr. João Pacheco a visitar uma sua prima
em Refojos de Basto, onde passou o dia até ás 4 horas da tarde. O
cavallo em que montava era um pôtro não educado ainda, e comprado
nas manadas hespanholas que vieram à feira de S. Miguel. Os seus
amigos, posto que João Pacheco fosse optimo cavalleiro, muitas vezes
lhe observaram que os caminhos precipitosos destas aldeias eram
improprios para ensinar pôtros. Fiado, porém, na destreza do pulso e
firmeza de joelhos, o temerario cavalleiro rompia por esses algares e
barrocaes com um denôdo digno de melhor emprego. Realizaram-se
funestissimamente as previsões dos seus amigos.
Ao luzco-fuzco entrou pelo portão da caza de Val-Escuro o pôtro sem o
cavalleiro, com as redeas e bridões despedaçados. O mesmo foi
levantar-se na caza um clamor a que todos os visinhos acudiram. João
Pacheco era extremosamente amado por trez tias, respeitaveis
senhoras, que não viam outra coisa n'este mundo. Amigos e creados,
sahimos todos pelo caminho de Refojos; e a meia legua de distancia,
em um barrocal fundo e lamacento (espectaculo doloroso!)
encontramos o cadaver de João Pacheco, de bruços, com as mãos
submersas no lamaçal, e sem gotta de sangue que denunciasse o orgão
ferido. Como era já escuro, e o cadaver só podia levantar se depois do
exame judiciario, ali ficamos alguns amigos até ao dia guardando os
despojos de tão nobre moço, desastradamente morto na flor da vida! O
cirurgião examinou-o, e apenas lhe encontrou o craneo amolgado, sem
extravasação de liquidos, excepto dois fios de sangue que derivavam
do nariz. Presume-se com bom fundamento que o cavallo o cuspira
contra uma rocha angulosa que forma um dos vallados da barroca;
por que tambem na palma da mão direita mostra contusões resultantes
de se amparar contra as escarpas do penhasco. Não pode attribuir-se
esta catastrophe
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