a outra causa que não seja a queda. Se fosse
homicidio, seriam outros os vestigios de ferimentos; alem de que, João
Pacheco era bem-quisto, honestissimo, respeitador da honra das
familias, não obstante haver sido creado e educado em Lisboa. Alem
de rico, era um gentil moço; pois não consta que deitasse a perder
alguma d'essas centenas de moças pobres que se consideram felizes
quando os fidalgos as levam á vereda da deshonra.
Nós, os seus amigos, choral-o-hemos em quanto as suas virtudes
lembrarem como exemplo a filhos e a cidadãos. Que descance na
perpetua morada da virtude o tão chorado mancebo; e peça ao
Altissimo resignação para as suas inconsolaveis tias!...
Quando li compungido esta correspondencia lembraram-me as palavras
de Pacheco, na ultima hora em que o vi: Não vos admireis, se um dia
vos constar que fui assassinado á traição. Communiquei a minha
desconfiança a José de Almeida.
--Palpita-me que foi assassinado pelo Abreu!--concordou o meu amigo,
e accrescentou:--Escrevo hoje ao abbade de St.^a Eulalia, citando-lhe
as palavras de João Pacheco, e pedindo os pormenores do desastre.
O abbade respondeu que eram infundadas as nossas desconfianças: por
quanto, no dia 11, em que João Pacheco perecêra, estava Alvaro de
Abreu na feira de S. Martinho em Penafiel com elle abbade e com as
senhoras morgadas de Athey; e que por signal n'esse dia perdêra o
Abreu cento e tantas moedas de ouro ao monte, á vista de dezenas de
pessoas que nunca o tinham visto jogar...
E rematava a carta d'este theor:
Os namorados fizeram as pazes. A pequena veio das Caldas muito
coada de côres e com grandes... olheiras.--(ia a escrever «orelhas»)
Nos primeiros dias, enfanicava-se a cada passo, e dava uns ais
romanticos como as damas de Basto de 1825. Infandum... renovare
dolorem. Depois, a mãe, que tambem é matreira de 1825, escreveu ao
Abreu dizendo-lhe que sua filha era victima da ingratidão d'elle.
Aquella «lua cheia» de Vizella, de que V. S.^a me fallava, não foi
ouvida a tal respeito. Ora o Abreu quer me parecer que sabia pouco
menos que a referida Tetis, e que o janota luso-britannico de que reza
a chronica escandalosa das thermas romanas no corrente anno, 1890,
da era de Cezar. Porém como o patrimonio d'elle é magro, e as
fazendas de Athey são de encher (e de fechar) o olho, V. S.^a verá que,
a final, a morgadinha, embora não tenha que desatar a cinta virginal,
apanha marido, parente, fidalgo e bacharel. Se, depois, as costellas
lh'o pagarão, isso não é da minha conta. Lá se avenham; mas melhor
será que elle se resigne, e feche os olhos como no duello, por quanto
saco com honra e proveito é raro, ou não o ha, se o anexim é tão
verdadeiro, quanto eu sou de V. S.^a amigo e venerador, Abbade Silva.
* * * * *
No anno seguinte, a floresta de amieiros do Vizella já não deu sombra e
frescura a nenhum dos seus hospedes do anno anterior.
A José de Almeida e a mim figurou-se-nos que as frondas do salgueiral
afestoavam um tumulo. Doeu-nos pungentissima a saudade de João
Pacheco. Nunca mais alli voltámos.
Estavam nas Caldas a morgada velha e o abbade de Santa Eulalia.
Irene e seu marido Alvaro de Abreu esperavam-se mais tarde.
Esperava-os D. Helena; mas o abbade secretamente nos disse que D.
Irene nem o marido tornariam a Vizella em dias de sua vida.
Segredou-nos que a morgadinha, ao oitavo dia de cazada, tentara fugir
para a mãe...
--Oh!--exclamou Almeida--ao oitavo dia! que lua de mel!
--A meu ver--piscou o abbade entortando a bocca disformemente--esta
lua de mel recebia a luz reflexa d'aquell'outra lua-cheia aqui das Caldas,
tão sua conhecida, sr. Almeida...
--Maganão! o abbade é o calendario de todas as luas que alumiam ha
trinta annos os amores nocturnos de Vizella...
--O que o sr. não sabe é que o marido lhe bate ás cegas...
--Sim? Agora vejo que o homem, no duello, obedecia ao costume.
--E, quando sahe, fecha-a n'um quarto de cantaria que lá chamam a
«torre,» e até dos creados a zela!
--Que amor, e que conceito ella lhe merece!--disse Almeida com a
seccura ironica do seu genio quando as situações demandavam piedade.
--Eu vi-a ha quinze dias na egreja de Refojos. Que mudança! Está
escaveirada, sem atavios, o desalinho da desgraça... Fez-me compaixão!
O marido estava á beira d'ella; não pude se quer dizer-lhe que fugisse.
--Mas a mãe... assim a deixa desprotegida?
--A mãe definha-se; e não sabe tudo o que ella soffre, porque a filha
não se queixa...
--Não intendo essa resignação!--objectou Almeida.
--Intendo-a eu. Irene era descompassadamente estupida a respeito de
certas coizas...
--A respeito de todas, pensava eu--emendou o portuense.
--Cuidou que o matrimonio era o concerto de certos aleijões com que
fôra d'aqui de Vizella.
--Fez
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