Miniaturas Romanticas | Page 6

Sebastião de Magalhães Lima
e salutar o
feiticeiro sorriso de seus labios sobre o meu pobre coração, minha
senhora. Já esquecido, ha muito, d'este mundo hypocrita e ridiculo,
estava longe de me reputar feliz um momento sequer, quando divisei,
na orla do meu horisonte, a terna imagem de v. ex.^a E, com effeito,
não houve resistir-lhe. Cedi a um impulso intimo; compenetrei-me da
gravidade do caso, e agora aqui me tem completamente escravisado e
rendido aos pés de v. ex.^a
Emilia, e porque não? Seja-nos licito revelar aqui o seu nome, Emilia
nada respondeu; baixou sua loura cabeça em scismador enleio, e teve a
loucura de o acreditar, a desgraçada.

Horas depois, Alvaro, ao vêr os salões de todo desertos, saíu, como
sempre, tetrico e pavoroso.
Entrou no primeiro café, que se lhe deparou; mandou vir champagne e
cognac; e bebeu, bebeu até á embriaguez! O ultimo calix voou pelos
ares, em pedaços ao clamor estridulo e rouquenho de--Vive l'amour!
Vive le champagne! Vive l'ivresse! Vive la folie!...
A prostração, comtudo, não o tornou em completa demencia, nem tão
pouco as forças physicas se lhe esgotaram.
Passeou a vista pelas mezas da casa, e apenas avistou dois meliantes
ainda profundamente encarniçados no delirio do jogo.
Levantou-se, e foi direito a elles. Apontou a uma carta, e perdeu;
apontou a outra, e tornou a perder; á terceira, entisicando-se-lhe a bolça,
soltou um derradeiro e sentido suspiro!
Já não havia mais recursos: saíu, pois, do botequim.
A aurora começava, então, a roxear o oriente com o clarão da sua
divina poesia. Ao longe, a cotovia annunciava um dia ameno e bello. A
brisa mórna do crepusculo bafejava de mansinho, ao brando contacto
de solitaria violeta, que se espreguiçava indolentemente, qual indiana
lasciva na sua rede de pennas!
Alvaro nem sequer se commoveu com aquelle espectaculo.
Pobre desgraçado! como seria elle capaz de poder comprehender essa
epopeia gigante, que tão evidentemente nos revela a existencia d'um
Deus omnipotente e justo, n'aquelle estado deploravel e asphyxiante?!
Passou, como se tudo lhe fôra indifferente.
Subiu, depois, uma longa e sinuosa escada, que conduzia a uma agua
furtada, cuja era a sua residencia. Veio abrir-lhe a porta uma joven
mulher pallida e alta, de feições distinctas e ainda delicadas, mas já
quasi extinctas pelo marulhar tenebroso do gêlo da desventura!

Uma luz baça allumiava o humilde aposento. Pela fresta da janella
apenas se coava um tenue raio de luz, que contrastava singularmente
com a pobreza e nudez d'aquelle exiguo e acanhado recinto.
Mas quem era aquella mulher? Que vida era a sua? Que fazia ella ali?
Aquella mulher era uma d'essas creaturas, como muitas, que Deus
arrojou ao mundo, para justa punição do homem, e opprobrio eterno da
humanidade.
Filha de paes abastados, aquella mulher, teria sido rica, outr'ora,
nimiamente formosa e sublimemente ditosa, se a fatalidade do destino,
peior que a fatalidade das paixões, não tivesse vindo macular para
sempre a sua reputação ephemera.
Paulina amara Alvaro ardentemente; mas o traidor, longe de sanctificar
aquelle amor com uma união licita, prostituiu torpemente a victima
indefesa de seus nefastos designios, sempre indifferente ás suas agonias
e ás suas dôres.
Paulina aproximou-se do seu amante, com o intuito de o beijar
docemente, segundo o seu costume, quando elle a arremessou
brutalmente ao meio da casa:
--Afasta-te, mulher vil! Para sempre! Não me tornes a beijar! Não
queiras, ainda mais, manchar a minha fronte com o teu osculo
impudico e pestilente. Julgara-te uma mulher, e não passas d'uma
desgraçada! Reputei-te um anjo, e és um demonio! Cri, por algum
tempo, na sanctidade do teu amor, e illudi-me, illudi-me sim, vibora
dolosa e maldicta!
Triste verdade!...
Ah! Ah! Ah!
Neste ponto, Alvaro soltou uma d'essas gargalhadas estridentes e
medonhas, que causam horror até ao maior heróe d'este mundo. Depois
caíu sobre um canapé esfarrapado e sediço, que elle herdara de seus

paes, em tempos mais ditosos, e ao lado do qual existia uma mezinha
tosca e ligeira, onde se accommodava invariavelmente uma botija de
genebra, que elle collou aos labios, tractando de a sorver
diligentemente.
Paulina, embrulhada n'um roupão rôto e velho, com as suas longas
madeixas em completo desalinho, foi-se arrastando insensivelmente no
pó da sua ignominia, até chegar ao pé de Alvaro, cuja mão ainda tentou
beijar mais uma vez.
Elle, quasi adormecido, soffreou aquelle golpe como lh'o permittiam as
suas debeis forças.
Paulina ajoelhou perante o seu algoz. Mal começara, porém, a
introduzir suas pequeninas e niveas mãos por entre os avelludados
cabellos de seu amante, prodigalizando-lhe toda a especie de blandicias
e carinho, de que só uma mulher é capaz,--Alvaro, como que tomado de
subito desespero, levantou-se, e, tomando do braço d'aquella pobre
mulher, exclamou:
--Paulina, é preciso que tu me entendas, d'uma vez para sempre. Eu não
te amo, nunca te amei, nem te poderei jámais amar. Has de ser
desgraçada
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