Miniaturas Romanticas | Page 7

Sebastião de Magalhães Lima
toda a tua vida, porque nunca me soubeste
comprehender,--porque nunca foste capaz de imaginar que, em logar
d'um amante, só tinhas diante de ti um leproso vil, a quem a sociedade
contaminou com o seu halito corrompido, para depois o deixar triste e
solitario neste theatro ignobil da humana corrupção. Tu, que foste boa e
meiga para comigo, procura outro mais digno de ti. Não faltarão
homens, que te saibam estimar. Vae, vae correr mundo; e deixa-me,
deixa-me por uma vez!...
Neste instante, desabotoou-se, por acaso, o casaco de Alvaro, e de seu
seio caíu um leque, que lhe havia sido dado poucas horas antes por
aquella joven e espirituosa Emilia, de quem já nos occupámos no
principio d'esta narrativa.
Paulina empallideceu terrivelmente, e ia para apanhar aquelle objecto,
tão caro e saudoso, de seu amante, quando elle se interpoz á sua

vontade, collocando-se de modo a impedir a realisação, bramindo
rancoroso e medonho. Os olhos chispavam-lhe sangue, e a bocca
espumava-lhe de satanica raiva.
Tambem não articulou nem mais uma palavra. Apanhou o leque com
soffreguidão inaudita; abriu-o, e começou a reparar n'uma borboleta
que alli se achava gravada. Depois sorriu-se, e, sempre com os olhos
fitos no mesmo ponto, exclamou:
--Qual te via sempre, mariposa gentil, adejando mimosa por sobre os
meus sonhos radiantes, appareceste-me hoje, mais bella e sublime
como nunca te havia imaginado. A tua imagem despertou ao longe os
echos da minha alma; consolou-me o fulgor da tua benefica luz, na
esperança d'um ditoso porvir!
Sê grande, minha Emilia, dá-me a crença e a vida outra vez! Suavisa o
meu penoso soffrer, com o teu balsamo salutar, e, com o orvalho de teu
doce coração, refrigera as chagas da minha imaginação enferma!...
Alvaro saíu, então, com tenções de nunca mais voltar áquella casa.
Paulina, essa jazeu por muito tempo n'um abatimento deploravel, até
que, ao fim de alguns dias, se resolveu a ir mendigar de porta em porta
o pão ázimo da desventura e do arrependimento.
Enganara-se, porém, aquella pobre mulher, quando julgara ter perdido
para sempre o seu amante, que, ainda no opprobrio da sua existencia,
não podera olvidar.
Um dia Alvaro regressou a casa, completamente regenerado d'aquelles
vicios hediondos, que nós lhe conhecemos na sua mocidade estouvada,
e perfeitamente arrependido das passadas loucuras.
Emilia fôra o seu anjo da guarda. Quando soube da mulher vilipendiada,
d'aquella boa e angelica Paulina, longe de a rivalisar, pelo contrario,
tractou de lhe promover o seu maior bem. E foi tanta a longanimidade
do seu coração, que um mez depois Alvaro era legitimo esposo de
Paulina e um dos mais honrados e bemquistos cavalheiros da invicta

cidade do Porto.
Deixal-os ser felizes. Que a benção do Senhor se compadeça dos seus
peccados, e faça descer sobre elles o anjo da felicidade e do amor.
O mundo é assim!

*UM DRAMA INTIMO*

UM DRAMA INTIMO
Ao meu amigo Agostinho F. Velho
La vie en effet n'est qu'une idée sans valeur, une page blanche, qu'otan
n'y a pas écrit ces mots:--J'ai souffert, c'est à dire, j'ai vécu.
BARON DE FEUCHTERSLEBEN.
I
«Como Amelia era formosa! que bondade a sua! que terna expressão a
do seu rosto angelico; e, que sentimento! que grandeza d'alma!...
«Como não eram radiosos aquelles sonhos da loura criança, que á noite
ia segredar á brisa os seus amores sentidos, em infantil rubor!...
«Oh!... e que meiguice não era a sua, espalhando tão docemente o
aroma de seus argenteos cabellos á viração perfumada da tarde, e
despertando, ao longe, os echos da solidão com o brando dedilhar da
sua harpa portentosa!...
«Phantasma cruel, que, por tanto tempo, me alimentaste o porvir
grandioso das minhas aspirações ephemeras! Sombra implacavel d'um
destino fallaz! Effigie derradeira d'uma chimera inutil! Espectro
medonho da medonha existencia! Mulher! anjo! demonio! tudo
emfim!...

«Porém, não!... renasça uma crença, ao menos! reviva a fé, em nossos
corações! dissipem-se as negruras da vida, e surja a aurora boreal d'um
futuro certo, e de uma verdade eterna!...
Nestes termos apaixonados fallava o venerando presbytero, Francisco
de Castro, ao seu affectuoso amigo, Alberto de Carvalhal, quando um
raio furtivo do sol, penetrando de soslaio por entre a coma dos
pinheiraes, que se erguiam altivos lá no cume das montanhas, os veio
despertar do inebriante gozo e suavissimo prazer, em que, desde longas
horas, se haviam esquecido dois amigos desditosos, profundamente
adormecidos nos braços d'uma saudade infinda.
O pescador deixara a choupana, que lhe era consolação extrema nas
horas de afflictivos transes e doloroso penar, para ir estender a rede na
praia mais proxima!
Ao longe ouvia-se a voz rouquenha e estridula do gondoleiro,
accordando aos echos da sua alma o doce nome da amante ditosa, que,
em terra, por elle velava, dia e noite.
O astro do dia, erguendo-se phantasticamente das salsas, escumosas
ondas em que parecera mergulhado,
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