Miniaturas Romanticas | Page 4

Sebastião de Magalhães Lima

«Não sei como communicar-te o temor violento, que se apoderou da
minha debilitada existencia ao ler e reler a tua carta. Aquellas linhas,
dictadas pela fatalidade poderosa do amor, e escriptas por tua angelica
mão, que tantas vezes beijei com o anceio de largas esperanças no
futuro, compungiram-me profundamente.
Justamente, quando o meu espirito allucinado procurava o calix da
ventura para docemente o libar, veiu a desdita sentar-se ao lado, e
involver-me no luto de medonha desesperança.
Meu Deus! meu Deus! Quanto a vida é cruel, sem uma esperança
fagueira que nos alimente os sonhos radiosos do porvir! Quão duro é de
tragar o absintho d'esta existencia ephemera!
Porque será que o espirito do homem é tão possante librando-se nos
vôos d'uma phantasia ardente; e cahe depois prostrado pela vertigem
das paixões no mais temeroso de todos os precipicios?
Insondaveis são os arcanos do Creador!
A esperança vivifica; o amor martyrisa!
Podesse ao menos o holocausto do meu doloroso soffrer resgatar os
dias sanctificados de Leonor, e eu satisfeito deporia a minha cruz,
orvalhada pelas lagrimas de eterna saudade.
A ventura é um anceio febril em espiritos privilegiados. Mas a ventura
é uma vaidade, uma chimera, entrecortada, apenas, pelas alternativas

radiantes de melhores horisontes!
Feliz o homem que tem fé; porque a fé, para almas bem formadas, é a
agua redemptora do seu baptismo.
Porém o homem, que sente o gêlo da descrença no seu coração; o
homem, que não pode evitar a peçonha corrosiva do cynismo e da
perversidade; esse homem é um desgraçado, um miseravel, como
muitos, que a sociedade escolhe para instrumento da sua implacavel
vingança, e opprobrio da humanidade!!
E quem me permitte ajuizar da minha virtude?...
Só Deus o sabe, meu anjo, quanto é leal e verdadeiro o pranto acerbo,
que derramei ao saber da tua sentida doença.
Possa, emfim, o Senhor ouvir a sinceridade da minha supplica, e fazer
descer sobre ti o anjo da felicidade e do amor.--Mauricio.»
CARTA ULTIMA
(De Leonor a Mauricio)
Bemfica, 1860.
«Apezar da expressa prohibição dos medicos de me evitarem tudo o
que possa prejudicar o meu estado melindroso de saude: não pude,
ainda assim, furtar-me a um desejo imperioso de me associar ao teu
pezar, mitigando-o, no caminho espinhoso do meu Golgotha.
É uma expiação, que a mim propria imponho, sem outro galardão, que
não seja a retribuição do teu entranhado affecto.
As lagrimas têm um condão mysterioso. Adoçam a adversidade
terrestre, com a consolação extrema d'um futuro incerto. Assim eu
podesse encontrar n'ellas o topico provavel para a medonha
enfermidade moral que hoje me devora.
Tudo creio impossivel.

Só a tua presença me poderia ser, talvez, refrigerio momentaneo para o
meu aturado martyrio, e doloroso esquecimento.
Regressa, portanto, á patria, meu bom amigo. Vem engrinaldar a fronte
da esposa com as flores amarellecidas do sepulchro, e prestar um
derradeiro tributo áquella que te amou na terra com o fervor da virgem
e pureza dos anjos.
Só Deus poderá abençoar o nosso amor!...
Não posso mais,... Mauricio... Sinto-me desfallecer sensivelmente.
Adeus... adeus, e talvez... para sempre.--Leonor.»
Inutil se tornaria aqui dizer, que Mauricio obedeceu peremptoriamente
ás ordens de sua saudosa noiva, tomando bilhete para o primeiro vapor
com escala por Lisboa.
Fôra, porém, intempestiva a sua viagem.
Quando chegou a Bemfica, encontrou a nudez e a solidão enthronisadas
no solio, onde deveria ter existido o jubilo e a gloria de dois amantes
ditosos.
Leonor havia desapparecido para sempre d'este mundo!...
O anjo da morte, extendendo suas negras azas sobre aquelle coração de
pomba, arrebatou-o para sempre á humanidade.
Eclipsou-se no céu uma estrella, e da terra voou um anjo á mansão dos
justos!
Mauricio libou até ás fezes o calix do infortunio.
Aquelle amigo verdadeiro e fiel; aquella intelligencia robustecida á luz
da profunda meditação; aquelle coração de poeta; aquella imagem
continuamente açoutada pelo tumultuar de sentimentos encontrados,
onde meigamente vinha transparecer a morbidez e o desalento d'uma
paixão precoce,--nunca mais transpoz o limiar da casa de Bemfica, que

outr'ora pisava, sentindo a vida a rejuvenecer-lhe a cada passo.
Ainda houve quem o visse, um mez depois, com as faces pallidas, os
olhos cadavericos e um semblante sepulchral.
Não era passado muito tempo, quando Cecilia recebeu uma carta de seu
sobrinho, concebida nos seguintes termos:
--Minha excellente tia.--Ao deixal-a em contristante e dolorosa
desolação, tendo-se associado á dôr e orphandade do espirito, como
unicas companheiras, que lhe restavam no areal sombrio da vida, era
mais do que dever d'um filho allivial-a, quanto em si coubesse, dos
transes medonhos e caprichos da sorte, por que acaba de passar o seu
bondoso coração.
Porém, minha tia, se neste mundo pode haver perdão para um
desgraçado, conceda-lh'o.
Já a meus pés se abre o abysmo incommensuravel do cynismo e da
descrença, que dentro em pouco me ha de absorver.
Haverá muito quem me
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