Marilia de Dirceo | Page 4

Tomás António Gonzaga
já não vejo as graças, de que fórma
Cupido o seu thesouro:
Vivos olhos, e faces côr da neve,
Com crespos fios de ouro;
Meus olhos só vem gramas, e loureiros;
Vem carvalhos, e palmas;
Vem os ramos honrosos, que destinguem
As vencedoras almas.
Busquemos, ó Musa,
Empreza maior;
Deixemos as ternas
Fadigas
de Amor.
Cantemos o Heróe, que já no berço
As Serpes despedaça;
Que fere os Cácos, que destronca as Hidras,
Mais os leões que abraça.
Cantemos, se isto he pouco, a dura guerra
Dos Tritães, e Tyféos,
Que arrancão as montanhas, e atrevidos
Levão armas aos Ceos.
Busquemos, ó Musa,
Empreza maior;
Deixemos as ternas
Fadigas
de amor.
Anima pois, ó Musa, o instrumento,
Que a voz tambem levanto;
Porém tu déste muito assima o ponto,
Dirceo não póde tanto:
Abaixa, minha Musa, o tom, que ergueste;
Eu já, eu já te sigo.
Mas, ah! vou a dizer _Heróe_, e _Guerra_,
E só _Marilia_ digo.
Deixemos, ó Musa,
Empreza maior,
Só posso seguir-te
Cantando
de Amor.

Feres as cordas d'ouro? Ah! sim, agora
Meu canto já se afina;
E a
huma voz, parece que ao som dellas
Se faz tambem divina.
O mesmo que cercou de muro a Thebas
Não canta assim tão terno;
Nem póde competir comigo aquelle,
Que desce ao negro Inferno.
Deixemos, ó Musa,
Empreza maior,
Só posso seguir-te
Cantando
de Amor.
Mal repito _Marilia_, as doces aves
Mostrão signaes de espanto,

Erguem os collos, voltão as cabeças,
Parão o ledo canto;
Move-se o tronco, o vento se suspende
Pasma o gado, e não come:
Quanto podem meus versos! Quanto póde
Só de Marilia o nome!
Deixemos, ó Musa,
Empreza maior;
Só posso seguir-te
Cantando
de Amor.
LYRA XII.
Topei hum dia
Ao Deos vendado,
Que descuidado
Não tinha as
settas
Na impia mão.
Mal o conheço,
Me sóbe logo
Ao rosto o fogo,
Que a raiva
accende
No coração.
_Morre, Tyranno,
Morre, inimigo_!
Mal isto digo,
Raivoso o
apérto
Nos braços meus.
Tanto que o moço
Sente apertar-se,
Para salvar-se
Tambem me
aperta
Nos braços seus.

O leve corpo
Ao ar levanto,
Ah! e com quanto
Impulso o trago

Do ar ao chão!
Poude suster-se
A vez primeira;
Mas á terceira
Nos pés, que
alarga,
Se firma em vão.
Mal o derrubo,
Ferro aguçado
No já cançado
Peito, que arqueja,

Mil golpes deo.
Suou seu corpo;
Tremêo gemendo;
E á côr perdendo,
Batêo as
azas;
Em fim morreo.
Qual bravo Alcides,
Que a hirsuta pelle
Vestio daquelle
Grenhoso
bruto,
A quem matou.
Para que próve
A empreza honrada,
C'o a mão manchada
Recolho
as settas,
Que me deixou.
Ouvio Marilia
Que Amor gritava,
E como estava
Vizinha ao sitio

Valer-lhe vem.
Mas quando chega
Espavorida,
Nem já de vida
O féro monstro

Indicio tem.
Então Marilia,
Que o vê de perto
De pó cuberto,
E todo involto

No sangue seu;
As mãos aperta
No peito brando,
E afflicta dando
Hum ai, os
olhos
Levanta ao Ceo.
Chega-se a elle
Compadecida;
Lava a ferida

C'o pranto amargo,

Que deramou.
Então o monstro
Dando hum suspiro,
Fazendo hum gyro
C'o a
baça vista,
Resuscitou.

Respira a Deosa;
E vem o gosto
Fazer no rosto
O mesmo effeito,

Que fez a dôr.
Que louca idéa
Foi a que tive!
Em quanto vive
Marilia bella,

Não morre Amor.
LYRA XIII.
Oh! quantos riscos,
Marilia bella,
Não atropella
Quem cégo
arrasta
Grilhões de Amor!
Hum peito forte,
De acordo falto,
Zomba do assalto
Do vil
traidor.
O amante de Hero
Da luz guiado,
C'o peito ousado
Na escura
noite
Rompia o mar,
Se o Helesponto
Se encapellava,
Ah! não deixava
De lhe ir fallar.
Do cantor Thracio
A heroicidade
Esta verdade,
Minha Marilia,

Prova tambem.
Cheio de esfôrço
Vai ao Cocyto
Buscar afflito
Seu doce bem.
Que acção tão grande
Nunca intentada!
Ao pé da entrada
Já tudo
assusta
O coração!
Pendentes rochas,
Campos adustos,
Que nem arbustos
Nem
hervas dão.
Na funda fralda
De calvo monte,
Corre Acheronte,
Rio de ardente

Mortal licor.
Tem o barqueiro
Testa enrugada,

Vista inflammada,
Que mete
horror.

Que seguranças!
Que fechaduras!
As portas duras
Não são de
lenhos;
De ferro são.
Por tres gargantas,
Quando alguem bate,
Raivoso late
O negro
cão.
Dentro da cova
Soão lamentos;
E que tormentos
Não mostra aos
olhos
A escassa luz!
Minos a pena
Manda se intime
Igual ao crime,
Que alli conduz.
Grande penedo
Este carrega;
E apenas chega
Do monte ao cume,

O faz rolar.
A pedra sempre
Ao valle desce,
Sem que elle cesse
De a ir
buscar.
Nas limpas aguas
Habita aquelle:
Por cima delle
Verdejão ramos,

Que pomos dão.
Debalde a bocca
Molhar pertende;
De balde estende
Faminta
mão.
Tem outro o peito
Despedaçado:
Monstro esfaimado
Já mais
descança
De lho roêr.
A rôxa carne,
Que o abutre come,
Não se consome,
Torna a
crescer.
Mas bem que tudo
Pavor inspira,
Tocando a lyra
Desce ao
Averno
O bom Cantor.
Não se entorpece
A lingua, e braço;

Não treme o passo,
Não
perde a côr.
Ah! tambem quanto
Dirceo obrára,
Se precisára,
Marilia bella,


Do esforço seu!
Rompêra os mares
C'o peito terno,
Fôra ao Inferno,
Subíra ao
Ceo.
Aos dois amantes
De Thracia, e Abydo
Não deo Cupido
Do que
aos mais todos
Maior valor.
Por seus vassallos
Forças reparte,
Como lhes parte
Os gráos de
Amor.
LYRA XIV.
Minha bella Marilia, tudo passa;
A sorte deste mundo he mal segura;

Se vem depois dos males a ventura,
Vem depois dos prazeres a
desgraça.
Estão os mesmos Deoses
Sujeitos ao poder do impio Fado:
Apollo
já fugio do Ceo brilhante,
Já foi Pastor de gado.
A devorante mão da negra Morte
Acaba de roubar o bem, que temos;

Até na triste campa não podemos
Zombar do braço da inconstante
sorte.
Qual fica no sepulchro,
Que seus a vós erguêrão, descançando:

Qual no campo, e lhe arranca os frios casos
Ferro do torto arado.
Ah! em quanto os Destinos impiedosos
Não voltão contra nós a face
irada,
Façamos, sim façamos, doce amada,
Os nossos breves dias
mais ditosos.
Hum coração que frouxo
A
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