Luar de Janeiro | Page 6

Augusto Gil
soffri, o que passei,
Um dia, noutra carta, o saberás.
MÃOS FRIAS CORAÇÃO QUENTE
Dez da manhã. Vento da
serra. Tres graus negativos
_Mãos frias, coração quente_!
Quanta vez isto dizias
Com o teu ar
sorridente,
Apertando-me as mãos frias...
Agora decerto o tenho
Num brazeiro, num vulcão.
O frio é tanto, é
tamanho
Que a penna cae-me da mão...
Q'ria dizer-te o que penso
E o que faço e premedito,
Mas posso lá
ser extenso
Com este frio maldito!
Tu perdoas certamente,
Tu não te zangas, pois não?
_Mãos frias,
coração quente_
--Lá diz o velho rifão...
NOIVA
_A João da Silva_
«Anda a dôr dissimulada
Mas ella dará seu fruito.»
Crisfal

«Vae ser pedida. Casa qualquer dia.»
(Trecho duma carta)
Tive noticias hoje a teu respeito:
«Vae ser pedida. Casa qualquer dia».

E o coração tranquillo no meu peito
--Continuou a bater como
batia...
Surpreso duma tal serenidade,
Todo eu, intimamente, me sondava:

Pois nem ciume? Nem sequer saudade?!
--E nem ciumes, nem
saudade achava...
Saudades, não; que o teu amor antigo
Guardam-no as cinzas (neste
coração)
Como em Pompeia aquelles grãos de trigo
Que após
centenas d'annos deram pão...
Saudades! Mas de quê?! Pois não sei eu
A lei antiga como o proprio
mundo
De que o prazer mal chega, já morreu,
E só a dôr nas almas
cava fundo?
Causei-te longas horas d'amargura,
Não consegues voltar a ser feliz;

A chaga que te abri não terá cura,
E se curar--lá fica a cicatriz.
Á luz dum juramento que trahiste
Tu has de vêr-me toda a vida pois.

Ergueste-o a Deus num dia amargo e triste
E Deus casou-nos esse
dia, aos dois...
Ciumes tambem não, por te venderes.
Desgraçadinha! Antes te
houvesses dado;
Não descerias tanto entre as mulheres,
Seria mais
humano o teu peccado.
Porém, embora a tua falta aponte,
P'ra mim és a que foste (ou que eu
suppuz);
O sol desapparece no horisonte
--E a gente vê-o ainda a
dar-nos luz...
Póde a desgraça erguer em frente a mim
Altas montanhas d'elevados

cumes.
O sol do amôr doiral-as-ha, e assim,
Vendo-o tão alto, não
terei ciumes.
Ciumes! Elle é que hade tel-os, quando,
Em claras noites de luar
silente,
Ouvir vibrar alguma voz, cantando
Os versos que te fiz
devotamente.
Versos para te ungirem os ouvidos
E os labios d'anemica e de santa,

Tão pobres, tão ingenuos, tão sentidos,
Que o povo humilde os
acolheu e os canta.
Então, se te olhar bem, logo adivinha...
Logo sombriamente se
convence
De que a tua alma se fundiu na minha
--E apenas o teu
corpo lhe pertence.
DE PROFUNDIS CLAMAVI AD TE DOMINE
_Á Leo_
Ao charco mais escuso e mais immundo
Chega uma hora no correr do
dia
Em que um raio de sol, claro e jocundo,
O visita, o alegra, o
alumía;
Pois eu, nesta desgraça em que me afundo,
Nesta contínua e
intérmina agonia,
Nem tenho uma hora só dessa alegria
Que chega
ás coisas infimas do mundo!...
Deus meu, acaso a roda do destino
A movimentam vossas mãos leaes

Num aceno impulsivo e repentino,
Sem que na cega turbulencia a domem?!
Senhor! Não é um seixo o
que esmagaes;
Olhae que é--_o coração dum homem_!...
JOANNINHA
_A Mayer Garção_

Descance de quando em quando...
Passar assim toda a tarde
Sempre
bordando, bordando,
Sem que um momento desista,
Até faz pena!
Não lhe arde
Nem se lhe perturba a vista?...
Descance de quando em quando...
Erga os olhos do bordado
E veja
quem vae passando.
O trabalho alegra a gente,
Mas assim, tão
aturado,
--Não lhe faz bem certamente.
Erga a carinha tranquilla,
Erga esse rosto tão lindo
E veja os moços
da villa
A passarem por aqui,
Uns descendo, outros subindo,
--E
todos d'olhos em si...
Descance de quando em quando
E veja se escolhe algum;
Já é
tempo d'ir pensando
Em casar. Não é assim?...
Se não lhe agrada
nenhum,
--Diga se gosta de mim.
Desde os começos do outono
Que eu a trago no sentido,
Não como,
não tenho sono,
Tudo me dá ralação?
Quer-me para seu marido?

--Diga que sim ou que não...
QUANDO AS ANDORINHAS PARTIAM...
A Cassianno Neves
Bocca talhada em milagrosas linhas,
A luz augmenta com o seu falar.
Esta manhã um bando de andorinhas
Ia-se embora, atravessava o mar.
Chegou-lhes ás alturas, pela aragem,
Um adeus suave que ella lhes
dissera,
--E suspenderam todas a viagem,
Julgando que voltára a primavera...
A PARÁBOLA DO PUCARO D'AGUA
Acreditaram os romanticos que a arte residia principalmente na

disformidade. Se atravez das proprias dores descessem ás profundas
realidades da vida, teriam observado que... o viver do povo encerra em
si uma poesia sagrada. Sentil-a e mostral-a não é tarefa de machinista;
para tal, não é necessario juntar-lhe effeitos theatraes.
... O que é preciso é ter olhos para vêr na sombra, na pequenez e na
humildade, é um coração que auxilie a vista nestes recessos do lar,
nestas sombras de Rembrandt.
MICHELET_. _O Povo
A Manuel Penteado
Buscava em algum assunto adrede
A versos que inculcassem
novidade,
Quando uma intensa e irreprimivel sêde
Me fez voltar do
sonho á realidade.
E pedi agua (já se vê) que veio
Consoante é d'uzo cá por entre o povo

Num pucaro de barro ingenuo e feio,
Servindo-lhe de salva um
prato côvo.
Bebi o liquido dum trago só;
E dito o «Deus te pague» habitual,

Subi de novo a escada de Jacob
No
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