Lendas e Narrativas | Page 4

Alexandre Herculano
que um dia me aconteceu... Escuta-me, que �� um horrendo caso...."
O velho n?o p?de acabar; porque a morte lhe cravou n'este momento as garras. Murmurou algumas palavras inintelligiveis: revirou os olhos, e feneceu. Deus seja com a sua alma!
Tinham passado annos: certo dia chegou ao castello do conde um mensageiro d'elrei Wamba. Chamava-o elrei a Toledo para o acompanhar com sua mesnada contra o rebelde Paulo. Os outros nobres-homens das cercanias eram como elle chamados.
Antes, por��m, de partirem junctaram-se todos no castello de Argimiro para fazerem uma grande montaria com mais de cem al?os, sabujos, e lebreus, cincoenta monteiros, e mo?os de b��sta sem conto. Era uma vistosa ca?ada.
Sa��ram no quarto d'alva: correram valles e montes; bateram bosques e matos. Era, comtudo, meio dia e ainda n?o haviam alevantado porco, urso, zebra ou veado. Blasphemavam de sanha os cavalleiros, praguejavam, e depennavam as barbas.
Argimiro, que por longa experiencia conhecia os sitios mais profundos da espessura, sentiu l�� por dentro uma tenta??o do diabo.
"Os meus hospedes, pensava elle, n?o partir?o sem beberem alguns cangir?es de vinho sobre uma ou duas pe?as de ca?a. Juro-o por alma de meu pae."
E seguido de alguns monteiros com suas tr��las de c?es, affastou-se da companhia, e deu a andar, a andar, at�� que se lan?ou por um valle abaixo.
O valle era escuro e triste: corria pelo meio uma ribeira fria e malassombrada. As bordas da ribeira eram penhascosas e faziam muitas quebradas.
Argimiro chegou �� primeira volta do rio: parou, poz-se a olhar de roda, e achou o que procurava. Abria-se uma caverna na encosta fragosa, que descia at�� a estreita senda da margem por onde o cavalleiro caminhava. Argimiro entrou na b?ca da cova, e a um ac��no entraram ap��s elle monteiros, mo?os de b��sta, al?os, sabujos e lebreus, fazendo grande matinada.
Era o covil de um onagro: a fera deu um gemido, e deixando as suas crias, estendeu-se no ch?o, e abaixou a cabe?a como quem supplicava.
"A ella!"--gritou Argimiro; mas gritou voltando a cara.
A matilha saltou no pobre animal; que soltou outro gemido, e cahiu todo ensanguentado.
Uma voz soou ent?o nos ouvidos do conde, e dizia:--"Orph?os ficaram os cachorrinhos do onagro: mas pelo onagro tu ficar��s deshonrado."
"Quem ousa aqui falar agouros?"--gritou o rico-homem, olhando iroso para os monteiros. Todos guardavam silencio: mas todos estavam pallidos.
Argimiro pensou um momento: depois saindo da cova, murmurou:--"V�� com mil Satanases!"
E com alegres toques de buzina e latidos da matilha fez conduzir ao castello a pr��a que tinha preado.[1]
E tomando o seu girifalte prima em punho, ordenou aos monteiros fossem dizer aos nobres ca?adores, que dentro de duas horas voltassem, porque achariam em seu pa?o comida bem aparelhada.
Depois, seguido dos falcoeiros, come?ou a encaminhar-se para o solar, lan?ando nebris e falc?es, e ajuntando ca?a de volateria, que a havia por aquelles montes mui basta.
4
Dobrava a campa da torre de menagem no castello do conde Argimiro: dobrava pela linda condessa, que seu nobre marido havia matado.
Andas cubertas de d�� a levam a enterrar ao mosteiro vizinho: os frades v?o atraz das andas cantando as ora??es dos finados: ap��s os frades vae o rico-homem vestido de grossa estamenha, cingido com uma corda, e rasgando pelas sar?as e pedras os p��s que leva descal?os.
Porque matou elle sua mulher, e porque ��a elle descal?o?
Eis o que a esse respeito refere a lenda escripta na folha branca do sanctoral.
5
Dous annos duraram guerras d'elrei Wamba: foram guerras mui de contar.
E por l�� andou o rico-bomem com seus bucellarios, que assim se diziam ent?o acostados e homens d'armas. Fez estrondosas fa?anhas e cavallarias; mas voltou cuberto de cicatrizes, deixando por campos de batalha gasta e consumida a sua valente mesnada.
E atravessando de Toledo para Biscaia seguia-o apenas um velho escudeiro. Velho e cheio de cans e rugas tambem elle era, n?o de annos, mas de penas e de trabalhos.
Caminhava triste e feroz no aspecto; porque do seu castello lhe eram vindas novas d'entristecer e raivar.
E cavalgando noite e dia por montes e charnecas, por bosques e por jard��as, imaginava no modo por que descobriria se eram falsas ou verdadeiras essas novas de mau peccado.
6
No solar do conde Argimiro, um anno depois da sua partida, ainda tudo dava mostras da magua e saudade da condessa: as salas estavam forradas de negro; de negro eram os trajos della; nos pateos interiores dos pa?os cresc��ra a herva, de modo que se podia ceifar: as reixas e as gelosias das janellas n?o se haviam tornado a abrir: descantes dos servos e servas, sons de psalterios e harpas tinham deixado de soar.
Mas ao cabo do segundo anno tudo apparecia mudado: as colgaduras eram de prata e matiz; brancos e vermelhos os trajos da bella condessa; pelas janellas do pa?o restrugia o ru��do da musica e dos saraus; e o solar de Argimiro estava por dentro e por f��ra alindado.
Um antigo villico do
Continue reading on your phone by scaning this QR Code

 / 76
Tip: The current page has been bookmarked automatically. If you wish to continue reading later, just open the Dertz Homepage, and click on the 'continue reading' link at the bottom of the page.