Lendas e Narrativas | Page 6

Alexandre Herculano
proprios passos sobre o xadrez variegado, que f��rma o pavimento da immensa quadra. Passado algum tempo, uma porta, escondida entre os brocados que forram os lados do throno, abre-se lentamente, e um novo personagem apparece. No rosto de Abdu-r-rahman, que o v�� aproximar, pinta-se uma inquieta??o ainda mais viva.
O recem-chegado offerecia notavel contraste no seu gesto e vestiduras com as pompas do logar em que se introduzia, e com o aspecto magestoso de Abdu-r-rahman, ainda bello apesar dos annos e das cans que come?avam a misturar-se-lhe na longa e espessa barba negra. Os p��s do que entr��ra apenas faziam um rumor sumido no ch?o de marmore. Vinha descal?o. A sua aljarabia ou tunica era de lan grosseiramente tecida, o cincto uma corda de esparto. Divisava-se-lhe, por��m, no despejo do andar e na firmeza dos movimentos que nenhum espanto produzia nelle aquella magnificencia. N?o era velho; e todavia a sua tez tostada pelas injurias do tempo estava sulcada de rugas, e uma orla vermelha circulava-lhe os olhos, negros, encovados e reluzentes. Chegando ao p�� do kalifa, que fic��ra immovel, cruzou os bra?os e poz-se a contempla-lo calado. Abdu-r-rahman foi o primeiro em romper o silencio:
"Tardaste muito, e foste menos pontual do que costumas, quando annuncias a tua vinda a hora fixa, Al-muulin! Uma visita tua �� sempre triste como o teu nome. Nunca entraste a occultas em Azzahrat sen?o para me saciares de amargura; mas apesar disso eu n?o deixarei de aben?oar a tua presen?a, porque Algafir--dizem-no todos e eu o creio--�� um homem de Deus. Que vens annunciar-me, ou que pretendes de mim?"
"Amir-al-muminin[1], que p��de pretender de ti um homem cujos dias se passam �� sombra dos tumulos pelos cemiterios, e a cujas noites de ora??o basta por abrigo o portico de um templo; cujos olhos tem queimado o ch?ro, e que n?o esquece um instante que tudo neste desterro, a d?r e o goso, a morte e a vida, est�� escripto l�� em cima? Que venho annunciar-te?!... O mal; porque s�� mal ha na terra para o homem, que vive como tu, como eu, como todos, entre o appetite e o rancor; entre o mundo e Eblis; isto ��, entre os seus eternos e implacaveis inimigos!"
"Vens, pois, annunciar-me uma desventura?!... Cumpra-se a vontade de Deus. Tenho reinado perto de quarenta annos, sempre poderoso, vencedor e respeitado; todas as minhas ambi??es tem sido satisfeitas, todos os meus desejos preenchidos; e todavia nesta longa carreira de gloria e prosperidade s�� fui inteiramente feliz quatorze dias da minha vida[2]. Pensava que este fosse o decimo quinto. Devo acaso apaga-lo do registo em que conservo a memoria delles, e em que j�� o tinha escripto?"
"P��des apaga-lo:--replicou o rude fakih--p��des, at��, rasgar todas as folhas brancas que restam no livro. Kalifa! v��s estas faces sulcadas pelas lagrymas? v��s estas palpebras requeimadas por ellas? Duro �� o teu cora??o, mais que o meu, se em breve as tuas palpebras e as tuas faces n?o est?o semelhantes ��s minhas."
O sangue tingiu o rosto alvo e suavemente pallido de Abdu-r-rahman: os seus olhos serenos como o ceu, que imitavam na c?r, tomaram a terrivel express?o que elle costumava dar-lhes no revolver dos combates, olhar esse que s�� por si fazia recuar os inimigos. O fakih n?o se moveu, e poz-se a olhar tamb��m para elle fito.
"Al-muulin, o herdeiro dos Beni-Umeyyas p��de chorar arrependido de seus erros diante de Deus; mas quem disser que ha neste mundo desventura capaz de lhe arrancar uma lagryma, diz-lhe elle que mentiu!"
Os cantos da b?ca de Al-gafir encresparam-se com um quasi imperceptivel sorriso. Houve um largo espa?o de silencio. Abdu-r-rahman n?o o interrompeu: o fakih proseguiu:
"Amir-al-muminin, qual de teus dous filhos amas tu mais? Al-hakem, o successor do throno, o bom e generoso Al-hakem, ou Abdallah, o sabio e guerreiro Abdallah, o idolo do povo de Korthoba?"
"Oh,--replicou o kalifa sorrindo--j�� sei o que me queres dizer. Devias prever que a nova viria tarde, e que eu havia de sabe-lo... Os christ?os passaram a um tempo as fronteiras do norte e do oriente. Meu velho tio Al-mod-dhafer j�� depoz a espada victoriosa, e cr��s necessario exp?r a vida de um delles aos golpes dos infi��is. Vens prophetisar-me a morte do que partir. N?o �� isto? Fakih, creio em ti, que ��s acceito ao Senhor; mas ainda creio mais na estrella dos Beni-Umeyyas. Se eu amasse um mais do que outro n?o hesitaria na escolha: f?ra esse que eu mand��ra, n?o �� morte, mas ao triumpho. Se, por��m, essas s?o as tuas previs?es, e ellas tem de realisar-se, Deus �� grande! Que melhor leito de morte posso eu desejar a meus filhos do que um campo de batalha em al-djihed[3] contra os infi��is?"
Al-gafir escutou Abdu-r-rahman sem o menor signal d'impaciencia. Quando elle acabou de falar repetiu tranquillamente a pergunta:
"Kalifa, qual amas tu mais dos
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