Lendas e Narrativas | Page 7

Alexandre Herculano
teus dous filhos?"
"Quando a imagem pura e sancta do meu bom Al-hakem se me representa no espirito, amo mais Al-hakem: quando com os olhos da alma vejo o nobre e altivo gesto, a fronte vasta e intelligente do meu Abdallah, amo-o mais a elle. Como te posso eu, pois, responder, fakih?"
"E todavia �� necess��rio que escolhas, hoje mesmo, neste momento, entre um e outro. Um delles deve morrer na pr��xima noite, obscuramente, nestes pa?os, aqui mesmo talvez, sem gloria, debaixo do cutello do algoz, ou do punhal do assassino."
Abdu-r-rahman recu��ra ao ouvir estas palavras: o suor come?ou a descer-lhe em bagas da fronte. Bem que tivesse mostrado uma firmeza fingida, sent��ra apertar-se-lhe o cora??o desde que o fakih come?��ra a falar. A reputa??o d'illuminado de que gosava Al-muulin, o caracter supersticioso do kalifa, e mais que tudo o haverem-se verificado todas as negras prophecias que n'um longo decurso de annos elle lhe fizera, tudo contribuia para atterrar o principe dos crentes. Com voz tr��mula replicou:
"Deus �� grande e justo. Que lhe fiz eu para me condemnar no fim da vida a perpetua afflic??o, a ver correr o sangue de meus filhos queridos ��s m?os da deshonra ou da perfidia?"
"Deus �� grande e justo,--interrompeu o fakih.--Acaso nunca fizeste correr injustamente o sangue? Nunca por odio brutal despeda?aste de d?r nenhum cora??o de pae, de irm?o, de amigo?"
Al-muulin tinha carregado na palavra irm?o com um accento singular. Abdu-r-rahman, possuido de mal refreiado susto, n?o attentou por isso.
"Posso eu acreditar uma t?o estranha, direi antes t?o incrivel prophec��a--exclamou elle por fim--sem que me expliques o modo por que se deve realisar esse terrivel successo; e como ha-de o ferro do assassino ou do algoz vir dentro dos muros de Azzahrat verter o sangue de um dos filhos do kalifa de Korthoba, cujo nome, seja-me licito dize-lo, �� o terror dos christ?os, e a gloria do islamismo?"
Al-muulin tomou um ar imperioso e solemne, estendeu a m?o para o throno, e disse:
"Assenta-te, kalifa, no teu throno, e escuta-me, porque em nome da futura sorte do Andalus, da paz e da prosperidade do imperio, e das vidas e do repouso dos mussulmanos eu venho denunciar-te um grande crime. Que punas, que perdoes, esse crime tem de custar-te um filho. Successor do propheta, iman[4] da divina religi?o do Koran, escuta-me, porque �� obriga??o tua ouvir-me."
O tom inspirado com que Al-muulin falava, a hora de alta noite, o negro mysterio que encerravam as palavras do fakih tinham subjugado a alma profundamente religiosa de Abdu-r-rahman. Machinalmenlte subiu ao throno, encruzou-se em cima da pilha de coxins em que elle rematava, e encostando ao punho o rosto demudado, disse com voz presa:--"P��des falar, Suleyman-ibn-Abd-al-gafir!"
Tomando ent?o uma postura humilde, e cruzando os bra?os sobre o peito, Al-gafir o triste come?ou da seguinte maneira a sua narrativa.
[1] Principe dos crentes, titulo correspondente ao de kalifa.
[2] Historico
[3] Guerra-sancta
[4] Pontifice. Os kalifas reuniam em si o summo imperio, e o summo pontificado.

III
"Kalifa!--come?ou Al-muulin--tu ��s grande; tu ��s poderoso. N?o sabes o que �� a affronta ou a injusti?a cruel que esmaga o cora??o nobre e energico, se este n?o p��de repelli-la, e sem demora, com o mal ou com a affronta, vinga-la �� luz do sol! Tu n?o sabes o que ent?o se passa na alma desse homem, que por todo o desaggravo deixa fugir alguma lagryma furtiva, e at��, ��s vezes, �� obrigado a beijar a m?o que o feriu nos seus mais sanctos affectos. N?o sabes o que isto ��; porque todos os teus inimigos tem cahido diante do alfange do almogaure, ou deixado tombar a cabe?a de cima do c��po do algoz. Ignoras por isso o que �� o odio; o que s?o essas solid?es tenebrosas, por onde o resentimento, que n?o p��de vir ao gesto, se dilata e vive �� espera do dia da vingan?a. Dir-to-hei eu. Nessa noite immensa, em que se involve o cora??o chagado, ha uma luz sanguinolenta que vem do inferno, e que allumia o espirito vagabundo. Ha ahi terriveis sonhos, em que o mais rude e ignorante descobre sempre um meio de desaggravo. Imagina como ser�� facil aos altos entendimentos o encontra-lo! �� por isso que a vingan?a, que parecia morta e esquecida, apparece ��s vezes inesperada, tremenda, irresistivel, e morde-nos surgindo debaixo dos p��s como a vibora, ou despeda?a-nos como o le?o pulando d'entre os juncaes. Que lhe importa a ella a magestade do throno, a sanctidade do templo, a paz domestica, o ouro do rico, o ferro do guerreiro? Mediu as distancias, calculou as difficuldades, meditou no silencio, e riu-se de tudo isso!"
E Al-gafir o triste desatou a rir ferozmente, Abdu-r-rahman olhava para elle espantado.
"Mas--proseguiu o fakih--��s vezes Deus suscita um dos seus servos, um dos seus servos de animo tenaz e forte, possuido tambem de alguma id��a occulta e profunda, que se
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