Lendas do Sul | Page 7

J. Simões Lopes Netto
mágico — que navegara em navio bento e entre frades rezadores e santos milagrosos —, esfregou-o no suor do seu corpo e virou-o em pedra transparente; e lan?ando o bafo queimante do seu peito sobre a fada moura, demudou-a teiniaguá6 , sem cabe?a. E por cabe?a encravou ent?o no novo corpo da encantada a pedra, aquela, que era o cond?o, aquele.

E como já era sobre a madrugada, no crescimento da primeira luz do dia, do sol vermelho que ia querendo romper dos confins por sobre o mar, por isso a cabe?a de pedra transparente ficou vermelha como brasa e t?o brilhante que os olhos de gente vivente n?o podiam parar nele, ficando encandeiados, quase cegos!...

E desfez-se a companhia até o dia da peleja da nova batalha. E chamaram — salamanca — à furna desse encontro; e o nome ficou p’r’as furnas todas, em lembran?a da cidade dos mestres mágicos.

Levantou-se um ventarr?o de tormenta e Anhangá-pit?, trazendo num bocó a teiniaguá, montou nele, de salto, e veio correndo sobre a correnteza do Uruguai, por léguas e léguas, até as suas nascentes, entre serranias macotas.
Depois, desceu, sempre com ela; em sete noites de sexta-feira ensinou-lhe a vaqueanajem de todas as furnas recamadas de tesouros escondidos... escondidos pelos cauílas, perdidos para os medrosos e achadio de valentes... E a mais desses, muitos outros tesouros que a terra esconde e que só os olhos do zaorís7 podem vispar...

Ent?o Anahangá-pit?, cansado pegou num cochilo pesado, esperando o cardume da desgra?as novas, que deviam pegar p’ra sempre...
Só n?o tomou tenência que a teiniaguá era mulher...
Aqui está tudo o que eu sei, que a minha avó charrúa8 contava à minha m?e, e que ela já ouviu, como cousa velha, contar por outros que, esses, viram!...

E Blau Nunes bateu o chapéu para o alto da cabe?a, deu um safan?o no cinto, aprumando o fac?o...; foi parando o gesto e ficou-se olhando, sem mira, para muito longe, para onde a vista n?o chegava mas onde o sonho acordado que havia nos seus olhos chegava de sobra e ainda passava... ainda passava, porque o sonho n?o tem lindeiros nem tapumes...
Falou ent?o
o vulto de face branca e tristonha; falou em voz macia. E disse assim:

III
é certo:
n?o tomou tenência que a teiniaguá era mulher... Ouve paisano.

No costado da cidade onde eu vivia havia uma lagoa, larga e funda, com uma ilha de palmital, no meio. Havia uma lagoa...

A minha cabe?a foi banhada na água benta da pia, mas nela encontraram soberbos pensamentos maus... O meu peito foi ungido com os santos óleos, mas nele entrou a do?ura que tanto amarga, do pecado...
A minha boca provou do sal piedoso... e nela entrou a frescura que requeima, dos beijos da tentadora...

Mas, é que assim era o fado... ; tempo e homem vir?o para me libertar, quebrando o encantamento que me amarra; duzentos anos h?o de findar; eu esperarei no entanto, vivendo na minha tristeza seca, tristeza de arrependido que n?o chora...
Tudo o que me volteia no ar tem seu dia de aquietar-se no ch?o...

Era eu que cuidava dos altares e ajudava a missa dos santos padres na igreja de S. Tomé, do lado ao poente do grande rio Uruguai. Sabia bem acender os círios, feitos com a cera virgem das abelheiras da serra; e bem balan?ar o turíbulo, fazendo ondear a fuma?a cheirosa do rito; e bem tocar a santos, na quina do altar, dois degraus abaixo, à direita do padre; e dizia as palavras do missal; e nos dias de festa sabia repicar o sino; e bater as horas, e dobrar a finados... Eu era o sacrist?o.

Um dia, na hora do morma?o, todo o povo estava nas sombras, sesteando; nem voz grossa de homem, nem cantoria das mo?as, nem choro de crian?as: tudo sesteava. O sol faiscava nos pedregulhos lustrosos, e a luz parecia que tremia, peneirada no ar parado, sem uma vira??o.
Foi nessa hora que eu saí da igreja, pela portinha da sacristia, levando no corpo a frescura da sombra benta, levando na roupa o cheiro da fuma?a piedosa. E sai sem pensar em nada, nem de bem nem de mal; fui andando como levado...
Todo o povo sesteava, por isso ninguém viu.
A água da lagoa borbulhava toda, numa fervura, ronquejando tal e qual como uma marmita no borralho. Por certo que lá embaixo, dentro da terra é que estaria o braseiro que levantava aquela fervura que cozinhava os juncos e as traíras e pelava as pernas dos socós e espantava todos os mais bichos barulhentos daquelas águas...
Eu vi, vi o milagre de ferver toda uma lagoa... ferver, sem fogo que se visse!
A m?o direita, pelo costume, andou a fazer o “Pelo Sinal”... e parou, pesada como chumbo; quis rezar um “Credo”, e a lembran?a dele recuou; e voltar, correr e mostrar o Santíssimo... e tanger o sino em dobre... e chamar o
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