Altissimo. As outras creanças volteavam alegres em redor
do grupo, e figuravam outros tantos anjos a solennisarem aquella festa
na tristeza, e aquelle jubiloso alvoroço do sangue, quando o espirito se
confrangia na dôr.
XV
Fr. Antonio dos Anjos fôra um oraculo de sciencia, e um exemplo de
santidade no seu mosteiro. Filho de paes opulentos, de virtudes,
herança de avós corajosos de braço e espirito, o seu patrimonio de
resignação não pudera a politica espoliadora apregoa'-lo na praça.
Affeito a encaminhar, com mão segura, pelas margens do abysmo, os
que a dôr extraviára, o monge amparava-se na altura da dignidade de
martyr. No centro d'aquella familia, quem mais paz e alegria soboreava
no coração era elle. Elle, sim, que trinta annos havia, despira as galas
do mundo, e envergára o habito que desfigura as fórmas do corpo, e as
feições da alma. Elle, sim, que trinta annos vivera pobre d'aquelle ouro
que afervora a adoração das multidões; e, então expulso da sua enxerga,
e do seu refeitorio, não geme a falta de um ouro, que nunca possuira.
XVI
--«Quereis a historia dos meus trabalhos, não é verdade?» perguntava o
monge, com sua sobrinha Maria sentada nos joelhos, e com dois dos
outros abraçados.
--«Sim, sim, queremos» respondeu Maria com extranha vivacidade.
--«Não--replicou o coronel--não recordes penas que te não alliviam o
receio de outras maiores...»
--«Não é assim...--tornou Frei Antonio--As afflicções, que se recordam
com serenidade, parecem zombar das afflicções por vir...»
--«Conte, conte... meu tio» instou Maria com muita doçura, dando á
voz a terna inflexão de uma supplica.
E frei Antonio, alegre como se contára apraziveis lances da fortuna,
contou assim o transito doloroso dos ultimos mezes da sua vida:
«Viver trinta annos, vendo todos os dias o leito onde se espera morrer,
e a sepultura onde o repouso do corpo continuará, foi a minha vida do
mosteiro. Ao lado d'esse leito, e d'essa sepultura, vigia quasi sempre o
espirito, porque na terra nem ao justo é permittida completa
tranquillidade. Vigiar, é entregar ao espirito a guarda do coração; é pôr
os olhos em Deus, alonga'-los ao mundo da esperança, enxugar-lhes o
pranto por homens, que o desprezam e o desprezam porque o não
comprehendem. A vigilia de um monge, tem, ás vezes, dôres, que
ninguem póde imagina'-las, sem sentir-se abrasado do santo interesse
da humanidade, que se espedaça.
«Não me viste saír da casa do nosso pae, meu irmão!... Eras creancinha,
e do colo de nossa mãe me deste um beijo, que me fez chorar, porque
era o ultimo, que me davas com labios de innocencia. Nunca mais te vi;
mas essas lagrimas, que te vejo agora, são as do meu irmão... é
impossivel que o não sejam. Sabias tu que eu existia?»
--«Sabia, mas ha doze annos que não tive novas tuas» respondeu o
coronel.
--«Ha doze annos... é verdade... Ha doze annos que frei Antonio dos
Anjos descera a um tumulo... O espirito vivia... mas o espirito do
penitente, vinculado pela expiação á imagem do seu crime, quebra os
vinculos do sangue, se os tem no mundo.
A voz do padre balbuciava estas ultimas palavras, cortadas de pausas,
que traíam a sua serenidade contrafeita.
Seguiram-se o silencio, e a anciedade.
Frei Antonio, á custa de um grande sacrificio, e de uma penosa
recordação, explicou a seu irmão o extranho silencio de doze annos.
Doze annos tinham sido o prazo em que as noites eram veladas pelo
remorso do homem, que tentára uma vez quebrar a alliança que fizera
com a renuncia de todos os gosos terrenos. Doze annos de purificação
para quem se manchara, um minuto, na rebeldia aos estatutos da sua
ordem, fôra um grande prazo, uma longa expiação, um zelo suicida,
talvez!
É que os homens não o comprehendem. Doze annos de crimes, e um
momento de remorso... isso sim, que, se não em todos os criminosos,
em alguns pelo menos, é verosimil e explicavel.
Esses prodigios explica-os facilmente a philosophia materialista: não é
o remorso, nem os gemidos do bem torturado pelo mal, nem o temor de
Deus: é a organisação com seus mysterios. Mysterios na escola da
materia, onde a natureza, positiva e carnal, é tudo! Como é que da seiva
do erro se nutrem viçosas as vergonteas da verdade? As luzes faiscam
do seio das trevas. Ha máximas preciosas que brilham ao clarão dos
incendios philosophicos.
XVII
Frei Antonio continuou:
«Entro pobre em tua casa, meu irmão; porém a desgraça é uma riqueza,
quando com ella suavisamos desgraças alheias. Contando-te as minhas
amarguras não adoçarei as tuas?
--«Deus--respondeu o coronel--suavisou-m'as antes de ti, meu irmão.»
--Bemdito seja Deus!--tornou o padre--era essa a resposta que eu
pediria a Deus que te inspirasse!... pois bem... seja a minha historia um
passatempo... Peregrinareis comigo n'estes infernos da terra que os
homens crearam. Aqui me
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