tendes com a tunica, e com esparto de
Dante... Serei para vós o que foi o poeta para a humanidade...
recrear-vos-hei...»
O frade afastára as bandas do capote, e deixára vêr o habito de S.
Francisco. A magestade da sua postura excitára um calefrio respeitoso
em todos, e elle mesmo, tocado pela consciencia do effeito religioso
d'aquelle acto, não susteve a lagrima do enthusiasmo, que é sempre
revelação de espiritos ardentes. Maria, alma tão cedo estreada na poesia
da dôr, cedo principiára a enlevar-se n'aquelles transportes, que a
tragedia excita em pessoas que vêem o theatro pelos olhos da
innocencia, e não podem desmentir o que vêem pelos calculos frios da
razão. Maria, pois, impressionára-se mais que seu pae e sua mãe da
attitude pathetica de seu tio. Mais tarde confessou ella que sentira
dobrarem-se-lhe os joelhos, e de certo ajoelhára, se frei Antonio lhe não
tomasse as mãosinhas que pareciam ajustarem-se em adoração extatica.
Esta scena fôra muda. O silencio é o desafogo das grandes emoções,
que nos abafam o espirito, enturvando-nos a razão. Parece que a
consciencia precisa digerir esses alimentos extraordinarios, que são a
vida energica das almas flexiveis.
XVIII
Proseguiu o frade:
«Quando, ha quatro mezes, os religiosos de *** viram approximar-se a
hora de entregar as suas cellas á revolução, ajuntaram-se para
deliberarem sobre a sua vida, como homens que d'ahi a pouco não
tinham posição alguma no mundo, que lhes valesse um bocado de pão.
Alguns eram de casas remediadas, outros irmãos de fidalgos,
sacrificados ao partido que lhes assegurava os seus privilegios; mas
nenhum contava com asilo seguro no tecto paternal, porque o temor da
perseguição fazia-nos pensar que eramos homens expulsos da familia, e
da sociedade. Entregámo-nos a Deus. E, depois, no meio de nós
estavam uns homens cobertos com o nosso habito, vivendo comnosco
ha muitos annos, ajoelhando comnosco ao mesmo crucifixo, e comendo
comnosco no mesmo refeitorio. Eram os nossos maiores inimigos.
Velavam-nos desde matinas a completas; desde a oração commum do
côro até ao ultimo padre nosso rezado no isolamento da cella. Eram
como os pretorianos de Nero syndicando os actos religiosos dos agapes
de Christo. Chamavam-se liberaes, illustrados e amigos dos homens.
De Deus sabia eu que elles o não eram. Dos homens, cruel amizade era
a sua, que precisava enfeitar o seu altar com o sangue dos seus
companheiros!
«Nos ultimos mezes da nossa communidade... deixae-me dizer-vos
uma prophecia amarga: nos ultimos mezes das ordens religiosas em
Portugal, apresentaram-se aquelles padres ao prelado, e pediram a sua
liberdade. Prevenindo alguma ligeira censura, em nome da regra do
patriarcha, lembraram ao guardião que o punhal era a arma do homem
livre, quando os algozes da humanidade não accediam aos augustos
preceitos da razão natural.
«O prelado era um justo, que chegára aos oitenta annos, com os cilicios
nos rins, vergando sob o peso de austeridade, alliviando quanto podia
esse gravame dos hombros menos rijos dos seus subordinados. A morte,
porém, era-lhe menos afflictiva que o pesar de uma tibieza de disciplina.
A sua resposta foi simples:
«Deixemos vir a mão da liberdade bater á porta do mosteiro e seremos
todos livres então. Uns, livres para morrer no desamparo. Outros, livres
para viver de vergonha. Todos seremos livres. Em quanto a vós, meus
irmãos, pedirei aos servos de Deus n'esta casa que peçam ao Senhor
para vós as consolações e a prudencia que não posso dar-vos.
Retirae-vos, que sou chamado ao côro.»
«Retiraram-se; mas, dois dias depois, ao amanhecer, foi aberta por
violencia a portaria. Alguns homens d'alli sahiram vestidos, e armados
como guerrilheiros. O padre porteiro, que subira á cella do prelado a
annunciar-lhe o acontecimento, encontrou um cadaver. Ao passar-lhe a
mão pela face topou um crucifixo inclinado sobre o seio. Ao agita'-lo,
humedeceu as mãos no sangue que borrifára os lençoes. Gritou.
Acudiram os monges. Em volta do seu leito ajoelharam homens que
choravam. Não tinham outra supplica, nem balbuciavam uma palavra.
Um justo estava ali morto: mataram-n'o seus irmãos, em nome de uma
liberdade, que não consentiu ao venerando ancião a liberdade de viver
mais alguns dias.
--Era preciso matarem-no para fugirem?--perguntou Maria com os
olhos turvos de lagrimas.
--Não seria preciso, minha filha, mas as chaves do mosteiro são
entregues ao prelado: mataram-n'o, tirando-lh'as.
--Mas o crucifixo,--replicou ella quem lh'o poria sobre a face?
--Foi o moribundo a quem os assassinos deixaram tempo de pedir a
Deus o perdão dos seus matadores.
--Que acontecimento tão triste, minha mãe!--exclamou assombrada a
menina, tomando entre as suas as mãos de sua mãe. E continuou: Eu
não pensei que os homens podiam fazer isso!... Quem me déra o céo
para meus paes e meus irmãos!
--E para o tio padre, não, meu anjinho?
--Meu tio tem certo o céo, porque tem soffrido muito, não é verdade?
--Muito, minha menina; mas
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