insoffrivel a maneata'-lo ao poste da
vergonha.
Feliz pelo destino, ou desgraçado pela fatalidade, o Lucifer,
despenhado d'este céo da terra, que a impiedade lhe deu, optou pelo
tumulo entre duas idéas: pobreza e impotencia.
Impotente para vencer a sociedade que lhe não restituia o seu ouro, o
desesperado, aborrecendo a morte tanto como a vida, crava-se um
punhal, que nem elle sabe se o vinga dos homens, se o deita no tumulo,
se o sacrifica á justiça de Deus.
O atheu pensára longas horas antes de erguer-se o patibulo; mas, nos
seus ultimos instantes, não era philosopho: era um algoz.
A desesperação enervára-lhe o entendimento, e robustecera-lhe o braço.
O cutello, no braço do algoz, não tem nada com o espirito. Um e outro
são machinas de morte.
XI
E o coronel ***, e sua esposa, e seus filhinhos eram christãos. E
oravam na desgraça, e sorriam no infortunio, e esperavam.
Esperança, filha dos céos! eterno cantico dos anjos!... bemdita sejas tu.
XII
E, quantas vezes, acarinhados pelas brandas lisonjas de uma esperança,
nos possuimos d'aquelle inoffensivo orgulho de felicidade, e tão perto
nos persuadimos que ella vem com toda a formosura real de um bello
sonho? E quando assim nos apressamos ao encontro d'essa linda
chimera, gerada nas entranhas do infortunio, não será tão triste
deparar-se-nos uma nova desgraça?
Muito triste. É uma luz que se apaga. Um horisonte que se fecha. Uma
colheita de lagrimas na seara das esperanças.
E o sorrir da resignação, e o levantar das mãos em fervente amor de
Deus, é a mais grandiosa attitude na desgraça. O infeliz é então um rei
no throno das angustias. O manto de retalhos tem a magestade da
purpura. Ignacio, o mendigo de Monserrate, é maior que o
gentil-homem de Loyola.
XIII
O coronel soffria muito; porque, a par do grupo querido de esposa e
filhos, nunca de seus olhos se afastava o aspecto da penuria.
Á escuridade da indigencia não chega a luz do amor: deixar falar os
poetas.
Ha sentimentos de miseria que os sentimentos da gloria não podem
eclipsar. A felicidade tem exaltações intermittentes de jubilo. Mas a
desgraça pensa sempre, fala sempre; vela á cabeceira do infeliz;
desperta-o com o aguilhão de um sonho mau; desmente-lhe as illusões;
ri-lhe a cada esperança; embrutece-o; retráe-lhe as expansões do
espirito.
Onde a desgraça emmudece com a consciencia do penitente, que se
levanta dos pés do ministro dos perdões, é na presença da cruz.
O coronel orava um dia com sua familia. Maria balbuciava as mesmas
palavras do pae, e parecia, com os olhos fixos n'elle, tomar-lh'as dos
labios como um beijo e um segredo de muita felicidade na muita
desventura.
A sua oração era a dadiva do Christo: era aquella, que pendera dos
labios divinos do Mestre como orvalho para todos os ardores, como
balsamo para todas as chagas, como herança de amor para todas as
gerações de ingratos.
Era esta a sua oração:
«Padre nosso, que estaes no céo, sanctificado seja o vosso nome; venha
a nós o vosso reino; seja feita a vossa vontade...»
XIV
Alguem procurava o coronel. Amigo ou inimigo? O homem da honra
nunca se nega. O que fôra christão antes de politico, e pedira a Deus a
paz de seus irmãos, antes de mostrar-lhes, ao sol das batalhas, o
lampejo de uma espada escrava da obrigação, esse poude ser
exauctorado de titulos ás grandezas, de direito ao trabalho, de pão, e de
liberdade, mas o opprobrio não o desanima, nem o envergonha.
A valentia moral não tem capitolios na sociedade immorigerada; mas
tem-os na consciencia do proprio que a experimenta. Um homem assim,
decaído do que fôra, apresenta-se altivo de certa soberania que parece
um triumpho, ultraje dos oppressores.
O coronel, se tivesse a receber as felicitações vendidas á sua patente de
general, talvez não consentisse que tão depressa fosse aberta a sua
porta.
Abriram-n'a.
O homem que entrára, sem dar o nome, era uma figura que, sem
articular palavra, impunha silencio aos que o recebiam. Trajava
pobremente.
Quem buscasse um modelo para a estatua da imagem do infortunio,
acha'-la-ia n'aquelle homem.
E, sorrindo, offerecia a mão ao coronel, que viera, chamado por sua
esposa, a contempla'-lo rodeado dos filhos, que pareciam perguntar-lhe
quem era o extranho hospede.
Aquelle silencio, precursor de lagrimas, não podia conter muitos
minutos corações anciosos.
--«Quem é o senhor?» perguntou o coronel.
--Quem sou eu?! respondeu o desconhecido.--Trinta annos de clausura,
e alguns mezes de trabalhos desfiguram a face de um irmão!...
O coronel correra aos braços do hospede. Maria, organisação
melindrosa, que presentia já os calefrios de um enthusiasmo juvenil,
estremecia d'aquelle tremor nervoso, em que as lagrimas da alegria
denunciam alma vehemente, apaixonada por tudo que é grandioso. Sua
mãe tomava a mão de seu cunhado entre as suas, que pareciam erguidas
em graças ao
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