por vir...?
--?Conte, conte... meu tio? instou Maria com muita do?ura, dando á voz a terna inflex?o de uma supplica.
E frei Antonio, alegre como se contára apraziveis lances da fortuna, contou assim o transito doloroso dos ultimos mezes da sua vida:
?Viver trinta annos, vendo todos os dias o leito onde se espera morrer, e a sepultura onde o repouso do corpo continuará, foi a minha vida do mosteiro. Ao lado d'esse leito, e d'essa sepultura, vigia quasi sempre o espirito, porque na terra nem ao justo é permittida completa tranquillidade. Vigiar, é entregar ao espirito a guarda do cora??o; é p?r os olhos em Deus, alonga'-los ao mundo da esperan?a, enxugar-lhes o pranto por homens, que o desprezam e o desprezam porque o n?o comprehendem. A vigilia de um monge, tem, ás vezes, d?res, que ninguem póde imagina'-las, sem sentir-se abrasado do santo interesse da humanidade, que se espeda?a.
?N?o me viste saír da casa do nosso pae, meu irm?o!... Eras creancinha, e do colo de nossa m?e me deste um beijo, que me fez chorar, porque era o ultimo, que me davas com labios de innocencia. Nunca mais te vi; mas essas lagrimas, que te vejo agora, s?o as do meu irm?o... é impossivel que o n?o sejam. Sabias tu que eu existia??
--?Sabia, mas ha doze annos que n?o tive novas tuas? respondeu o coronel.
--?Ha doze annos... é verdade... Ha doze annos que frei Antonio dos Anjos descera a um tumulo... O espirito vivia... mas o espirito do penitente, vinculado pela expia??o á imagem do seu crime, quebra os vinculos do sangue, se os tem no mundo.
A voz do padre balbuciava estas ultimas palavras, cortadas de pausas, que traíam a sua serenidade contrafeita.
Seguiram-se o silencio, e a anciedade.
Frei Antonio, á custa de um grande sacrificio, e de uma penosa recorda??o, explicou a seu irm?o o extranho silencio de doze annos.
Doze annos tinham sido o prazo em que as noites eram veladas pelo remorso do homem, que tentára uma vez quebrar a allian?a que fizera com a renuncia de todos os gosos terrenos. Doze annos de purifica??o para quem se manchara, um minuto, na rebeldia aos estatutos da sua ordem, f?ra um grande prazo, uma longa expia??o, um zelo suicida, talvez!
é que os homens n?o o comprehendem. Doze annos de crimes, e um momento de remorso... isso sim, que, se n?o em todos os criminosos, em alguns pelo menos, é verosimil e explicavel.
Esses prodigios explica-os facilmente a philosophia materialista: n?o é o remorso, nem os gemidos do bem torturado pelo mal, nem o temor de Deus: é a organisa??o com seus mysterios. Mysterios na escola da materia, onde a natureza, positiva e carnal, é tudo! Como é que da seiva do erro se nutrem vi?osas as vergonteas da verdade? As luzes faiscam do seio das trevas. Ha máximas preciosas que brilham ao clar?o dos incendios philosophicos.
XVII
Frei Antonio continuou:
?Entro pobre em tua casa, meu irm?o; porém a desgra?a é uma riqueza, quando com ella suavisamos desgra?as alheias. Contando-te as minhas amarguras n?o ado?arei as tuas?
--?Deus--respondeu o coronel--suavisou-m'as antes de ti, meu irm?o.?
--Bemdito seja Deus!--tornou o padre--era essa a resposta que eu pediria a Deus que te inspirasse!... pois bem... seja a minha historia um passatempo... Peregrinareis comigo n'estes infernos da terra que os homens crearam. Aqui me tendes com a tunica, e com esparto de Dante... Serei para vós o que foi o poeta para a humanidade... recrear-vos-hei...?
O frade afastára as bandas do capote, e deixára vêr o habito de S. Francisco. A magestade da sua postura excitára um calefrio respeitoso em todos, e elle mesmo, tocado pela consciencia do effeito religioso d'aquelle acto, n?o susteve a lagrima do enthusiasmo, que é sempre revela??o de espiritos ardentes. Maria, alma t?o cedo estreada na poesia da d?r, cedo principiára a enlevar-se n'aquelles transportes, que a tragedia excita em pessoas que vêem o theatro pelos olhos da innocencia, e n?o podem desmentir o que vêem pelos calculos frios da raz?o. Maria, pois, impressionára-se mais que seu pae e sua m?e da attitude pathetica de seu tio. Mais tarde confessou ella que sentira dobrarem-se-lhe os joelhos, e de certo ajoelhára, se frei Antonio lhe n?o tomasse as m?osinhas que pareciam ajustarem-se em adora??o extatica.
Esta scena f?ra muda. O silencio é o desafogo das grandes emo??es, que nos abafam o espirito, enturvando-nos a raz?o. Parece que a consciencia precisa digerir esses alimentos extraordinarios, que s?o a vida energica das almas flexiveis.
XVIII
Proseguiu o frade:
?Quando, ha quatro mezes, os religiosos de *** viram approximar-se a hora de entregar as suas cellas á revolu??o, ajuntaram-se para deliberarem sobre a sua vida, como homens que d'ahi a pouco n?o tinham posi??o alguma no mundo, que lhes valesse um bocado de p?o. Alguns eram de casas remediadas, outros irm?os de fidalgos, sacrificados ao partido que lhes assegurava os seus privilegios; mas nenhum

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