Lagrimas Abençoadas | Page 9

Camilo Castelo Branco
contava com asilo seguro no tecto paternal, porque o temor da persegui??o fazia-nos pensar que eramos homens expulsos da familia, e da sociedade. Entregámo-nos a Deus. E, depois, no meio de nós estavam uns homens cobertos com o nosso habito, vivendo comnosco ha muitos annos, ajoelhando comnosco ao mesmo crucifixo, e comendo comnosco no mesmo refeitorio. Eram os nossos maiores inimigos. Velavam-nos desde matinas a completas; desde a ora??o commum do c?ro até ao ultimo padre nosso rezado no isolamento da cella. Eram como os pretorianos de Nero syndicando os actos religiosos dos agapes de Christo. Chamavam-se liberaes, illustrados e amigos dos homens. De Deus sabia eu que elles o n?o eram. Dos homens, cruel amizade era a sua, que precisava enfeitar o seu altar com o sangue dos seus companheiros!
?Nos ultimos mezes da nossa communidade... deixae-me dizer-vos uma prophecia amarga: nos ultimos mezes das ordens religiosas em Portugal, apresentaram-se aquelles padres ao prelado, e pediram a sua liberdade. Prevenindo alguma ligeira censura, em nome da regra do patriarcha, lembraram ao guardi?o que o punhal era a arma do homem livre, quando os algozes da humanidade n?o accediam aos augustos preceitos da raz?o natural.
?O prelado era um justo, que chegára aos oitenta annos, com os cilicios nos rins, vergando sob o peso de austeridade, alliviando quanto podia esse gravame dos hombros menos rijos dos seus subordinados. A morte, porém, era-lhe menos afflictiva que o pesar de uma tibieza de disciplina. A sua resposta foi simples:
?Deixemos vir a m?o da liberdade bater á porta do mosteiro e seremos todos livres ent?o. Uns, livres para morrer no desamparo. Outros, livres para viver de vergonha. Todos seremos livres. Em quanto a vós, meus irm?os, pedirei aos servos de Deus n'esta casa que pe?am ao Senhor para vós as consola??es e a prudencia que n?o posso dar-vos. Retirae-vos, que sou chamado ao c?ro.?
?Retiraram-se; mas, dois dias depois, ao amanhecer, foi aberta por violencia a portaria. Alguns homens d'alli sahiram vestidos, e armados como guerrilheiros. O padre porteiro, que subira á cella do prelado a annunciar-lhe o acontecimento, encontrou um cadaver. Ao passar-lhe a m?o pela face topou um crucifixo inclinado sobre o seio. Ao agita'-lo, humedeceu as m?os no sangue que borrifára os len?oes. Gritou. Acudiram os monges. Em volta do seu leito ajoelharam homens que choravam. N?o tinham outra supplica, nem balbuciavam uma palavra. Um justo estava ali morto: mataram-n'o seus irm?os, em nome de uma liberdade, que n?o consentiu ao venerando anci?o a liberdade de viver mais alguns dias.
--Era preciso matarem-no para fugirem?--perguntou Maria com os olhos turvos de lagrimas.
--N?o seria preciso, minha filha, mas as chaves do mosteiro s?o entregues ao prelado: mataram-n'o, tirando-lh'as.
--Mas o crucifixo,--replicou ella quem lh'o poria sobre a face?
--Foi o moribundo a quem os assassinos deixaram tempo de pedir a Deus o perd?o dos seus matadores.
--Que acontecimento t?o triste, minha m?e!--exclamou assombrada a menina, tomando entre as suas as m?os de sua m?e. E continuou: Eu n?o pensei que os homens podiam fazer isso!... Quem me déra o céo para meus paes e meus irm?os!
--E para o tio padre, n?o, meu anjinho?
--Meu tio tem certo o céo, porque tem soffrido muito, n?o é verdade?
--Muito, minha menina; mas n?o é já bastante o que tenho soffrido?
--Penso que sim... Eu n?o sei ainda a sua vida, mas lembra-me que meu tio póde fazer que os homens sejam bons, dizendo-lhes historias que os fa?am ter dó dos que soffrem.
Olharam-se todos com admira??o. é que Maria contava sete annos de edade; e alguns mezes de soffrimento. Predestina??o!?...
XIX
?Ao anoitecer de um dia passado em ora??es e suffragios por alma do nosso chorado prelado--continuou frei Antonio--ouviram-se tiros ao longe do mosteiro. Eramos quarenta e tantos os monges assombrados pelo terror n?o sei se da morte, se das injusti?as da humanidade a quem n?o offenderamos. A egreja, escura e silenciosa, afigurava-se-me um grande tumulo, e um doce repouso. Ajoelhei. Ajoelharam todos. E lembra-me com emo??o o fervor d'aquellas preces murmuradas como a derradeira supplica do que vae apparecer na presen?a de Deus. Os tiros avisinhavam-se, e o alarido, ao principio confuso, era já perto um grito distincto: morram os frades! abaixo os ladr?es!
?Eram 23 de Outubro de 1833. Que noite aquella, santo Deus!...
?As balas ouviamo'-las zumbir, e bater na parede da egreja, e nas vidra?as do zimborio. Todos os servos empregados na casa vieram ajuntar-se ás nossas ora??es, acobertando-se com a protec??o dos ministros de Deus, como debeis mulheres, em semelhante lance, buscando o invalido apoio de seus maridos. Nós n?o podiamos nada, quando á debilidade de nossas for?as moraes ajuntavamos a resigna??o, o abandono de nossas vidas aos decretos da Providencia. Os paroxismos tinham sido longos e trabalhosos. Uma hora de prepara??o para receber a morte, que sentiamos avisinhar-se com a vozeria, e com os tiros, devera quebrantar-nos o espirito, aniquilando-nos lentamente a
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