Garatujas | Page 3

Joaquim de Melo Freitas

(Isto me pasma! transporta! e maravilha!)
Votado a berço humilde

p'lo destino
Filho do povo,--a _Gloria_--te perfilha!
*Mysterioso abysmo*
Tepido sonho de luz
corpo, que destila aroma
sublime e claro
axioma
espargindo amor a flux!
Uma vertigem produz
teu olhar, o seio, a côma,
voluptuoso
symptoma
que a phantasia traduz.
Debil flôr, que o sol admira
beijando com azedume
as estrellas de
saphira...
mas ninguem sequer presume
que o meu coração expira
na
mortalha do ciume.
*Na floresta*
Conversa nos abetos a bafagem,
Nas franças range o vento
compassado
E á matilha esquivando-se um veado
Pasma de vêr no
bréjo a sua imagem.
Que rumor tão subtil, que doce agrado,
Poesia terna e perfida,
selvagem,
Em que os echos se arrastam na folhagem
Entre doceis
de musgo avelludado.
Irrompem as gazellas nos aceiros
E as cobras apparecem na giesta

Quando as gralhas alagam os olmeiros.
Triste como o silencio da floresta,
Oiço dentro de mim uivos d'horror.

Combatem dois leões--_Ciume e Amor!_
*O cão de bordo*
A cerração é densa. O pobre hiate
Sem leme desarvóra na refrega;

Penetra na escotilha a onda céga,
Alquebra-se o baixel no duro
embate.

A trovoada estala, a prôa abate;
No escaler a maruja ao ceu se apéga,

Este a vida infeliz surdo lhe nega,
Que as lagrimas não bastam p'ra
resgate!...
Um cão hirsuto, magro, avermelhado,
Com os olhos chorosos,
flamejantes,
Que brilham como negros diamantes
Late com desespero, busca a nado,
Mergulha entre os cadaveres
boiantes,
O dono encontra, e morre extenuado.
*No harem*
No matiz do tapete auri-felpudo
Haydé reclina as fórmas langorosas,

Scismam d'inveja purpurina as rosas
Admirando-lhe as faces de
velludo.
Modelo, que convida a obsceno estudo
N'um desmaio entre gazes
vaporosas
P'las cassoulas de prata sumptuosas
O ambar, o beijoim
arde a miudo.
Quando rompe nos ceus a madrugada
Sentem-se beijos em lascivo
espasmo
Que illuminam a alcôva perfumada
E um eunucho--decrepito sarcasmo!--
Que a barbacã vigia na
esplanada,
Crê-se na terra um mero pleonasmo.
*Esculptura*
Que bella estatua! Collo d'alabastro,
Um riso de crystal, faces
ardentes,
Um adreço de perolas os dentes
E os olhos chispam o
fulgor d'um astro!
De maus intentos o porvir alastro
Porque passando desdenhosa sentes,

Que intimidas com lividas correntes
Quem doido beija o sulco do
teu rastro.

Paradoxo cruel! treva d'arminho,
Idolo deslumbrante, ruim creança

Que da ternura forjas sevo espinho!
Quando te vejo occorre-me a lembrança,
Flôr de gelo, sinistro
rosmaninho,
D'enforcar-me a sorrir na tua trança.
*Cavatina*
(Palavras ditas entre bastidores a uma corista)
Tenho ideias com-_fusas_ e geladas
Sobre a _escala_ do amor onde
resplende
_Lá_ n'esse vivo _sol_, que mais se accende

_Rallentando_ as promessas calculadas.
A _gamma_ dos suspiros não attende,
É de mau _tom_ possuir lindas
manadas
D'amantes, que se _afinam_ nas ciladas
Das _pausas_, que
o desejo não entende.
Algumas joias quiz com ar guapo
E a _compasso_ dos negros agiotas

Outras requer n'um prodigo--_dá capo_.
Morre-se--diz o _adagio_--d'alegria
Portanto se eu pagasse em boas
_notas_
Expiravamos ambos d' ... _harmonia_.
*No theatro anatomico*
Sobre a meza de marmore luxuosa
Descança scintillante formosura

D'uma creança esbelta, uma pintura,
Que parece dormir silenciosa.
As alvas rômas, que a virtude espósa
São como alegre ninho de
candura;
Tão fresca, tão sentida e melindrosa,
Causa pena
entregal-a á sepultura.
Os estudantes em prodiga algarvia
Retalhando o cadaver delicado

Jogam chufas de sordida alegria.

Mais tarde o esqueleto dissecado
Assiste ás prelecções d'anatomia

Á escuta com ar petrificado.
*Epitaphio*
Meu coração aqui jaz, erma ruina
Onde habita a ironia, o vil
phantasma
Golphão anachoreta entre o miasma
Perseguido p'la
brisa crystallina.
O lyrio, o trevo ri junto á bonina,
Só de raiva a minha alma abdica,
pasma
Porque a tristeza famulenta traz-m'a
Nas duras garras d'ave
de rapina.
Meu coração aqui, sob esta alfombra
Dos pallidos desdens, justos
ciumes
Adora morto e frio a tua sombra.
Até que emfim--oh ceus!--os meus queixumes
Te despertam o choro,
que me assombra
Envolvendo o cadaver em perfumes!
*Aquarella*
Accorda a sombra tacita do lago,
Do rouxinol a candida volata;
A
lua em chispas tremulas de prata
Imprime ao lesto amor um tom
presago.
O vento raro e brando com afago
O tredo esquife languido arrebata

E o transporta subtil, como um pirata,
Dando azas ao terror ignoto,
vago.
Suspira na floresta a morna aragem,
As 'strellas trocam beijos
delirantes,
Que mais excitam castellã e pagem,
Eis brilha uma coiraça junto á margem
E a frecha sibilando alguns
instantes
Acaba n'um só golpe os dois amantes.
*Testamento*

Lego uma trança do cabello d'ella
Para atar um cavallo á mangedoura

E as cartas da flacida impostora
Para embrulhar assucar e canella.
Ao credulo rival, deixo, leitora,
A licença de entrar pela janella;

Outrosim deixo as ligas e a fivela
Que cingiram a perna encantadora:
Os beijos que me deu ficam comigo
E a memoria das noites
palpitantes
Hade caber tambem no meu jazigo.
O seu retracto irá ao lupanar
P'ra assistir á luxuria das bacchantes
Já
que a dona não vae em seu logar.
*Barcarola*
«Corre, vôa, borboleta, vae graciosa
Libar ondas de nectar delirante

A anémona cingir, o lyrio, a rosa
Com a aza fugitiva, coruscante.
«Vae soffrega d'amor e sê ditosa.
Dá-se no ceu um caso semelhante

Quando estrellas em noite vaporosa
Se abysmam n'uma queda
extravagante.
«Vae mariposa, a chamma te fascina
Na aresta do ludibrio, como
esphinge
Em deserto d'areia crystallina.»
Callam-se as vozes; picam-se as amarras;
A gondola deslisa e o mar
attinge
Ao som dos bandolins e das guitarras.
*Bric-à-brac*
O dono miseravel da
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