Galatéa | Page 5

António Joaquim de Carvalho
porque és humano,
Que a razão só não doma o
bruto insano.
POLYFEMO.
Oh grande, oh raro exemplo d'amizade!
Oh coração, gerado de
piedade!
Despido d'ambição, e d'avareza,
Só inclinado á mísera
pobreza!
Deixa, que por mostrar-me agradecido,
A teus honrados
pés chegue abatido;
E esta boca, por quem serás louvado,
Beije o
chão duro, dos teus pés tocado.
LAURINDO.
Suspende, Polyfemo, eu não pertendo
A tua gratidão, antes me
offendo,
De a meus pés te prostares abatido,
Acatamento só ao Ceo
devido.
POLYFEMO.
Oh quanto és digno de louvor completo,
Por liberal, humilde, e por
discreto!
Aprenda o avarento ambicioso
A ser mais liberal, mais
caridoso:
O que da santa, e mísera pobreza
Foge, como quem foge
da vileza,
Veja, que o rico, o paderoso, o nobre
Talvez, chegue a

pedir esmola ao pobre:
Esse, que as minas abre, e colhe o ouro,

Julgando a vida ter no seu thesouro,
Veja, que a vida, e ouro n'hum
momento
He como o fumo, que consome o vento:
Siga os teus
passos o soberbo inchado,
Que julga, que a ventura tem ao lado:

Olhe, que a seca o grosso rio esgota,
E até com vento o cedro se
derrota.
Longe, longe de nós, ó vicio forte,
Vicio mais feio, do que
a feia morte.
LAURINDO.
Não terão parte em nós vicios danados,
Nem pizaráõ a flor dos nossos
prados;
Que esta lã, que nos cobre, esta pobreza
Contra o vicio nos
serve de defeza.
Vamos gozar a santa paz ditosa,
Vamos colher a
fruta saborosa
Da minha bella Aldêa: vem, amigo,
Que eu não me
ausento, sem que vás comigo.
POLYFEMO.
Vamos; mas ah Laurindo, quem diria,
Que por huma mulher,
por'huma ímpia
Eu havia deixar a minha Aldêa,
E ir d'esmolas viver
na terra alheia?
Oh triste Polyfemo! Oh desgraçado!
De ti deves
queixar-te, e não do fado:
Em mil exemplos o perigo viste,
Devias
fugir delle, não fugiste?
Pois agora o teu erro irás pagando,
E o
damno sem remedio lamentando.
Tome exemplo de mim, o que ama
cégo,
Julgando ter no amor todo o socego,
Veja a minha desgraça, e
tema o dano,
Que sempre nasce deste amor profano:
Não prenda a
doce, amavel liberdade,
Já que o Ceo lhe quiz dar livre a vontade:

Fuja do amor, e guarde esta doutrina,
Se quizer viver longe da ruina.

Mas ah! Nem já do amor quero lembrar-me,
Que he facil outra vez
precipitar-me.
Adeus, ó campos meus, campos amados,
Que me
daveis o fruto, e pasto aos gados:

Já não hei de ferir vossos ouvidos,

Nem já respondereis aos meus gemidos.
Adeus, ó rio meu, que me
obrigavas,
Quando ao meu gado tuas aguas davas;
Mas pago ficas,
que essa grossa enchente
A augmenta de meus olhos a corrente.


Adeos, plácida fonte, onde algum dia
Se alegre rias, eu alegre ria;

No prazer te imitei; mas hoje afflicto
Só no pranto, que verto, he que
te imito.
Lembra-te, ó fonte, que a cruel Pastora,
Essa, que sem
razão me foi traidora,
Por ti jurou, que essa agua lhe faltasse,
Se
ella de amor a pura se manchasse:
Agora deves, pois faltou perjura,

Por castigo negar-lhe essa agua pura:
Como ella contra si justiça pede,

Ou procure agua longe, ou morta á sede;
Mas ah! Que digo! He
muita crueldade:
Não, não lhe negues agua por piedade,
Tem della
compaixão, dá-lhe desculpa,
Basta só, que a castigue a propria culpa.

Adeos, ó prado ameno, as flores bellas
Eu te roubei para tecer
capellas:
Perdoa-me, e talvez que inda melhores,
Que á custa do
meu mal terás mais flores:
E apague a minha culpa, que te aggrava

Este pranto, que humilde os pés te lava.
Adeos, Pastores, doces
companhias
Dos meus passados, e felices dias;
Porém dias tão
breves, quanto he breve
No Irverno a calma, no Verão a neve:
Se o
meu canto aprendestes algum dia,
No tempo da ventura, e d'alegria

Hoje do meu desgosto, e do meu damno
Podeis lucrar mais util
desengano,
Vendo, por breve ser minha ventura,
Quanto a glotia do
mundo pouco dura:
Que apenas nos faz ver hum falso gosto,
Logo
atrás delle vem maior desgosto.
Adeos, ó Galatéa; mas que digo!

Cuidei, que tinhas inda o nome antigo;
Mas não deves ter já nome de
humana,
Sendo Leão feroz, vibora insana:
Fica-te embora em paz, e
só te peço
De mim t'esqueças, que eu de ti m'esqueço:
Sim, farei,
que não tornes a lembrar-me
Para querer-te, nem para vingar-me:
E
poderemos só ficar lembrados
Do exemplo, com que fomos
doutrinados:
Mas vê, quanto differem as doutrinas,
A que eu te dei,
daquella, que me ensinas:
Eu te ensinei a ser fiel, constante,
Tu me
ensinaste a ser falso, inconstante;
Mas nunca me seguiste a lealdade,

Nem eu soube seguir-te a falsidade;
Porém essa doutrina; inda que
inutil,
Estimo-a, porque em parte me foi util:
Se até aqui das
Pastoras não fugia,
Porque a sua traição não conhecia,
Já della
fugirei desenganado,
Como quem foge do animal damnado.
Longe,
longe de mim, ímpias tyrannas,
Ide viver com féras deshumanas:


Em fim, parto a morrer: Adeos, Pastora,
Adeos, ímpia: Adeos, falsa:
Adeos, traidora.
SONETO.
Novo exemplo aqui tens, mísero humano,
Que incensas os Altares da
vaidade,
Aqui te mostro a estrada da verdade,
Por onde ao Templo
vás do desengano:
De Polyfemo o lamentavel damno,
De Galatéa a horrenda falsidade

Te excitem a fugir da crueldade,
Que he premio certo desse amor
tyranno!
Elle consome os bens, a honra offende,
O socego perturba, arrisca a
vida,
E o coração mais livre assalta, e rende.
Ah! Destróe
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