por me arrancar de amor a palma,
Me roubou a doce
alma da minha alma,
Vista dos olhos meus, bem como estrella,
Que
luz me dava, para poder vêlla.
Clara luz, doce vida, alma preciosa,
Tudo perdi. Oh scena lastimosa!
Tudo o vil me roubou; porém
protesto
Fazer o seu castigo manifesto
Ao Ceo, á terra, a todos os
viventes:
Elle me offende, as culpas são patentes;
Pois o proprio
delicto he, que o condemna,
A que segundo a culpa, sinta a pena.
LAURINDO.
Queres que a morte de Ácis justifique
Huma céga paixão, hum vil
despique?
POLYFEMO.
Quero, porque da injúria se não gave,
Que o proprio sangue a sua
culpa lave:
E se neste lugar já o apanhára,
O coração do peito lhe
arrancára.
LAURINDO.
Dize: se a Galatéa perdoaste,
Depois que a culpa enorme lhe provaste,
O Pastor, que he talvez menos culpado,
Porque não he, como ella,
perdoado?
POLYFEMO.
Ella sim: me offendeo; mas obrigada,
E merece perdão por violentada;
Mas elle não he digno de clemencia,
Pois mais culpado está pela
violencia.
LAURINDO.
Aqui não ha violencia, ha certa culpa,
Que Amor condemna, e logo
Amor desculpa,
Delicto immensas vezes praticado
Por quem ama, e
pertende ser amado.
POLYFEMO.
Assim se obra; mas sempre he falsidade,
Quando offende as leis
santas d'amizade.
LAURINDO.
He máo quebrar a Lei; mas que te espanta,
Se ella te jurou fé, e a fé
quebranta?
Polyfemo, discorre mais prudente;
Vence-te a ti, se
queres ser valente:
Eu teu amigo sou, eu sou mais velho,
Tu, que és
mais moço, toma o meu conselho
No falso Amor não faças confiança:
Desterra a ira, foge da vingança,
Que esta inquieta, aquella te
amofina:
De qualquer dellas sempre vem ruina.
Males, que tu não
queres supportallos,
Não deves para os outros desejallos,
Que ás
vezes são, qual pedra despedida,
Que no mesmo que a deita, abre a
ferida:
Queres a morte de Ácis? Não ponderas,
Que póde em ti
cahir, se nelle a esperas?
Teme o Ceo vingador, teme-lhe a ira:
O
Ceo, que a vida dá, só elle a tira:
Só elle sobre as vidas tem dominio,
E não deves oppôr-te ao seu designio;
Nem ao menos vingar-te
levemente
Poderás, sem que fiques delinquente.
Olha, que para
Jupiter Supremo
He menos, que hum mosquito, hum Polyfemo.
Á
voz só do seu raio penetrante
Treme de susto a rocha mais constante.
Foge, foge de o veres irritado,
E não faças, que a mão levante irado.
Ah! Já, mudas de côr, tremes, e pensas?
Pois a ti mesmo, espero, te
convenças.
POLYFEMO.
Tremo de confusão, e de mim tremo;
Os castigos do Ceo Respeito, e
temo;
Mas o affecto, a paixão, a honra, a offensa
Não me deixão
acção, em que eu me vença:
Vejo a justa razão, quero seguilla;
Mas
a paixão vem logo a destruilla:
Que este meu coração nunca descança
De chamar-me ao caminho da vingança.
LAURINDO.
Qualquer paixão, qualquer impaciencia
Se vence com discurso, e com
prudencia.
POLYFEMO.
Tão desgraçado sou, que neste empenho
Nem já discurso, nem
prudencia tenho:
Quem vio tão enredado labyrintho
Como este, que
na idéa, e n'alma sinto!
Deoses, se justos sois, ou dai-me a morte,
Ou me livrai de confusão tão forte;
Eu se vingar-me vou, me
precipito;
Porque aos Deoses offende o meu delicto:
Se assento em
perdoar, não persevero,
Porque em vendo o offensor, logo me altero;
Porém hum novo meio já me occorre:
Melhor acerta, quem melhor
discorre.
Eu não quero incitar ao Ceo clemente,
Mas para não
vingar-me do insolente,
Eu fugirei de o ver, que ao vêllo, logo
A
cinza quente exhalaria fogo.
Deixarei estes monte, estes prados,
Que a verdura me davão para os gados:
Irei viver nas mais occultas
brenhas,
Onde gente não veja, mas só penhas:
Da vingança, e
d'affronta assim me privo,
E ninguem sabe se sou morto ou vivo.
LAURINDO.
Resolves bem, amigo; sim, he justo
Fugires do perigo a todo o custo;
Porque busca a desgraça todo aquelle,
Que vendo o damno, não se
aparta delle:
Perca-se a Patria, perca-se a fazenda,
Perca-se tudo, e
nunca o Ceo se offenda.
Tu sim perdes lavoiras, e o serrado;
Mas o
Ceo, que esses bens te havia dado,
Te dará novos campos mais
extensos,
Donde possas colher frutos immensos:
Quem perder pelo
Ceo, fique esperando,
Que em vez da perda, ficará lucrando:
Se a
tua choça perdes, caro amigo,
A minha he grande, vivirás comigo:
Para a tua lavoira dar-te-hei terra
Da campina, que tenho, além da
serra;
Dar-te-hei duas palmeiras mui frondosas,
Donde colhas as
tâmaras gostosas:
Dar-te-hei duas formosas aveleiras,
Tortas sepas,
viçosas oliveiras:
E do mais fruto, que o Ceo der, pendente
Repartiremos ambos irmãmente.
Para o gado lá tens viçosa relva,
Lá tens para o recreio a linda selva,
Onde acharás hum bosque mui
sombrio,
De huma parte arvoredo, d'outra hum rio:
Alli se ouvem
os pássaros cantando,
Alli se escuta o rio murmurando,
Nelle andão
de contínuo os pescadores,
Nelle pescão tambem alguns Pastores
O
saboroso peixe á longa cana,
Ou com o iscado anzol, que mais o
engana:
Em fim, he campo ameno, he deleitavel,
Fructuosa a terra,
o clima saudavel:
Lá vivirás, amigo, descançado,
Sem ver a causa
do mortal cuidado:
Pois naquella distancia por extensa
Não vês o
offensor, nem vês a offensa.
POLYFEMO.
Discreto amigo, amigo verdadeiro,
Tu fostes dos humanos o primeiro,
Que me soube vencer: eu que algum dia
Nem a razão, nem Deoses
conhecia,
Hoje a razão abraço, os Deoses temo;
Tu me fizeste hum
novo Polyfemo.
LAURINDO.
Convence-te a razão,
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