matadouro.
Assim que o mestre tirou o livro da gaveta, em seguida a palmatoria, e
depois o lenço escarlate, de chita, fez-se um silencio lugubre na sala.
--Lê tu, João--principiou elle.
O João do moleiro foi lendo, mas cada vez que se ia aproximando da
terrivel palavra, ia-lhe faltando o animo.
Dizer que P-h-i diz fi, que temeridade! Emfim continuou
írremediavelmente:
--E como a sciencia chama... chama...
E ergueu supplicante os olhos para o verdugo.
O mestre tossiu para se dar ao respeito, e bradou:
--Lê para bai-xo, me-ni-no--accentuando as syllabas com um sorriso
ameaçador.
--Chamada--continuou o pequeno indeciso--chamada... e terminou em
tom mais baixo, com a incerteza de quem não sabe o que
diz--Philosophia.
--Como?--bradou o mestre, descarregando-lhe com o junco pelas
orelhas.--Como?
O pequeno fechou os olhos, encolheu os hombros, e emendou a chorar:
--Pi-lo-so-pi-a.
O professor descarregou segunda juncada, e berrou:
--Pilosópia, burro, pilosópia!
--Pilosópia,--repetiu o pequeno.
Apenas o João do moleiro disse a palavra, levantou-se o Gabriel do seu
logar e declarou com a voz serena e com as lagrimas a saltarem-lhe dos
olhos:
--Snr. mestre, quem ensinou a dizer assim ao João do moleiro fui eu.
Oh! que escandalo, Santo Deus! O mestre ergueu-se de golpe. Os
discipulos tremiam como varas verdes; e os mais pequeninos até
choravam! Podéra! O que iria acontecer, Nossa Senhora! O mestre ia
correr tudo a bolaria, não ha duvida.
--O que é lá?--gritou o mestre Joaquim com uma voz convulsa.--O que
é?
E ficou a olhar para o Gabriel, inclinando com o indicador o pavilhão
da orelha direita.
--Fui eu que ensinei assim--repetiu o Gabriel assustado.
--Vem cá--chamou de afogadilho o mestre--já aqui, seu atrevido. E
bateu com a palmatoria na mesa. O Gabriel poisou o livro no logar e
aproximou-se.
--Aqui já.
O mestre descarregou-lhe nas mãosinhas tenras meia duzia de furiosas
palmatoadas.
Foi muito bem feito! Apre! Offender a sabedoria do seu mestre!
* * * * *
De uma outra vez, de tarde, aconteceu passar o abbade pela aula do
mestre regio. Fóra ouvia-se uma gritaria, que eu sei lá! parecia que o
mundo ia acabar.
Á porta da aula estavam tres pobres mulheres, cada uma com um
filhinho ao collo.
--Ahi vem o sr. abbade--disse uma d'ellas.--Vamos pedir-lhe, mulheres.
Aquillo foi Nosso Senhor que o trouxe por aqui.
Abeiraram-se do abbade, e imploraram-lhe que fosse elle pedir ao
mestre que perdoasse por esta vez aos rapazinhos.
--Então o que aconteceu?--perguntou o reitor.
--Quem sabe lá, sr. abbade! Elles berregam, que parece que os matam!
--Se eu já até ouvi o meu Manoel, que é tam fraquinho!
--E o meu João, sr. abbade, que tam doentinho tem andado.
--E o meu José! aquelle que foi este anno á primeira confissão, sr.
abbade; sabe?
O abbade dirigiu-se á porta e bateu.
--Quem é?--perguntou de dentro a voz aspera do mestre.
--Abra, mestre Joaquim, faz favor?
O abbade entrou. Para os pequenos foi como se vissem a Providencia.
--Então o que lhe fizeram estes mariolas, sr. Joaquim?--perguntou o
abbade, olhando em roda para os alumnos.
--O que me fizeram? Roubaram-me dois lapis!
--Oh! que grande peccado!--exclamou o abbade, arregalando os olhos.
--E é que nenhum confessa--explicou o mestre. E bradou, voltado para
os pequenos--nenhum confessa, mas eu ra a i xo-os, aqui, todos.
O abbade poz-lhe a mão no hombro e serenou-o, dizendo-lhe:
--Pois se nenhum confessa, é o mesmo; que vamos já saber quem foi.
Espere ahi que volto já.
Saíu o abbade, e, passados instantes, entrou na aula, precedido de uma
rapariga.
Aproximou-se da mesa e disse:
--Põe tudo aqui em cima, Josephinha. Assim. Agora vai-te embora.
A pequena poisou uma panella de folha, e tirou debaixo do avental um
gallo preto. O abbade metteu o gallo dentro da panella, cobriu-a com o
testo, e principiou assim:
--Fez-se um grande peccado! Roubaram um lapis! Quem rouba um
lapis, é muito capaz de roubar tudo! Meus filhos, um de vós commetteu
o crime; e não o confessa por vergonha. Ora, por causa d'aquelle que
roubou os lapis, vão padecer todos os mais. Ahi teem! Em vez de só
fazer um peccado, que Nosso Senhor lhe perdoava, se o confessasse e
se arrependesse, vae commetter muitos: faltar á verdade, que é tão feio,
e depois deixar que os outros soffram injustamente.
Os pequeninos ouviam o abbade com religiosa veneração.
O abbade proseguiu:
--Hão de vir todos, cada um por sua vez, pôr a mão sobre esta panella.
O gallo preto ha de cantar logo que sinta sobre o testo a mão criminosa
do que roubou o lapis. E fica assim conhecido o ladrão; o sr. mestre
Joaquim ha de castigal-o, e eu não o quero ver mais. Ora, torno a dizer,
se confessar está perdoado.
Na aula, silencio profundo.
--Nenhum se accusa?--disse o abbade.--Venha o numero 1.
Foi o numero 1
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