Contos dAldeia | Page 6

Alberto Braga
inimigo. Os esquadrões insoffridos da cavallaria
corriam sobre elle. Em volta da tenda levantou-se rapidamente--como
nas magicas do theatro!--uma bateria, com as boccas dos canhões
apontadas para o leito. Os piquetes de infanteria corriam a
marche-marche, de bayonetas caladas, para o surprehenderem no
somno. Ao fundo, no viso de um outeiro, Bonaparte, o terrivel

Bonaparte, com as suas botas de escudeiro e o seu chapeu de bicos
posto de travez, como o chapeu de um estudante de Salamanca,
assestava sobre elle o oculo de alcance, sorrindo alegremente da
victoria!
O capitão Macario via tudo aquillo, ouvia o estrepito dos cavallos, o
tropido da infanteria, as gargalhadas de Bonaparte, e sentia-se preso ao
leito, impotente, inerme, anciado, sem poder gritar!... Façam ideia!
De repente, todo aquelle exercito enorme se transformou n'um gigante,
que lhe prendeu brutalmente as pernas com dois grilhões de ferro!
O capitão esforçou-se ainda por se levantar; mas conseguiu, apenas,
depois de muito custo, soltar este brado afflictivo, com uma voz
convulsa:
--Ás armas!
E despertou, ouvindo as gargalhadas de... Bonaparte!
O velho abriu desmesuradamente os olhos, volveu-os espantado em
torno de si; e, quando um instante depois, se sentiu completamente
acordado, deu com o nétinho, que lhe puxava pelas pernas, para lhe
subir ao collo!
A creancinha estava com os olhos levantados para o avô, a sorrir, muito
alegre, porque julgou que tinha sido para ella, como brincadeira,
aquelle grito suffocado--Ás armas!

O GALLO PRETO
(A JOÃO DE DEUS)
Havia d'antes em Penajoia--terra que ninguem é capaz de ver no mappa
geographico de Portugal--uma aula regia de primeiras letras.
A aula era n'uma casa de um só andar, rente do chão. Ficava no meio

de uma clareíra, e tinha ao lado dois grandes sobreiros, que a
abrigavam do sol, no estio, e que rangiam, no inverno, quando
sopravam as rajadas do nordeste.
Os alumnos entravam ás oito horas da manhã, saíam ao meio-dia, para
jantar; e voltavam depois ás duas horas, para sairem ás cinco da tarde.
Alguns d'elles vinham de longe, meia legua, tres quartos de legua de
distancia. Eram todos pequeninos e pobres. Saíam ao romper da manhã
de suas casas, com o livro debaixo do braço, e a louza das contas
pendente de um cordão, lançado a tiracollo. No caminho, os que
vinham de mais longe, iam-se reunindo aos condiscipulos que
encontravam; jogavam o botão, ou, se era tempo, trepavam aos
castanheiros para cruelmente roubarem os ninhos dos melros e
verdelhões.
O mestre, que tinha sido um valente cabo de milicianos, era um velhote
rabujo, de pellos nas orelhas, e que pouco mais sabia do que os
alumnos, que ensinava.
Um dia perguntei-lhe eu:
--Diga-me cá, sr. Joaquim, que methodo adopta?
--Que methodo?!--exclamou elle, estranhando a pergunta. E depois,
levantando as sobrancelhas, e com as sobrancelhas os oculos, fitou-me
desconfiado, e respondeu com ar solemne:
--Adopto o methodo do Achiles (do Axiles, foi como elle dísse).
Mas, a despeito de tudo isto, era um tyranno, como o são quasi todos os
ignorantes.
A aula, como já disse, ficava ao rez do chão. A luz entrava por duas
frestas, que ficavam acima dois palmos da cabeça de um homem;
porque assim era preciso--explicava o mestre--para que os rapazitos se
não distrahissem, a olhar para fóra. Ao fundo da sala ficava uma meza
de pinho e uma cadeira, que era o logar do mestre. Depois seguiam-se
bancadas de pau, collocadas como uma platéa, duas a duas, deixando

ao meio um intervallo, por onde entravam os alumnos; e, quando todos
tinham entrado, por onde passeiava gravemente o professor, com o
livro n'uma das mãos, e na outra um junco.
Os pequenos, assim que se aproximavam da aula, impallideciam.
E antes de entrarem, quem ali passasse, via-os muitas vezes ainda a
repetirem a lição, trémulos, enfiados e com a mesma coragem de quem
tem de subir a uma forca!
O Gabriel era ainda um pequenote de sete annos. Morava ao pé do
abbade. E o abbade, que era um santo velhinho, é quem muitas vezes
lhe ensinava a lição. Por isso, e como o pequeno era esperto--ui! diziam
os conhecidos, o Gabriel? esperto como um alho!--era o Gabriel que
quasi sempre ensinava a lição aos outros.
--Como se lê esta palavra, Gabriel? dizes-me?--pedia-lhe de uma vez o
João do moleiro.
--Soletra lá.
E principiou o outro:
--P-h-i, pi.
--Qual pi! Tambem eu cuidava! P-h-i, fi--emendou o Gabriel.
--Fi!--exclamou o João,--Fi! Pêta! Tu enganas-me, Gabriel.
--Não engano, João; lê fi-, que foi como me ensinou o sr. abbade.
N'isto, chegou á porta da aula o mestre.
Vinha a palitar-se, e com a face e orelha direita mais vermelhas, porque
tinha dormido a sésta.
Chegou á porta e gritou:
--Canzuada, salta para dentro!

E lá entram todos de chapeusinho na mão, cheios de medo, como um
rebanho de ovelhas a entrar para um
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