Elle chama-se Macario; mas eu, quando lhe falo, dou á minha voz um
tom marcial e digo-lhe alto ao ouvido:
--Como vae o nosso bravo capitão? Como passa o meu valente capitão?
E então, na visinhança é mais conhecido pelo capitão Feroz, que foi a
alcunha que lhe ficou, por ter sido um militar valente e corajoso como
poucos!
Quando os francezes vieram a Portugal...--Ai!--disse-me elle um dia,
referindo-me as façanhas da guerra--quem me cassara n'aquelle tempo!
Eu tinha então desoito annos, umas pernas rijas, o ôlho fino!... Olhe, só
d'uma vez me falhou a pontaria. Eu lhe conto. No convento de Santa
Clara, de Thomar, estava recolhida uma menina, de que eu gostava
muito e com a qual depois casei. Um official francez, passando-lhe
debaixo da grade, disse-lhe um galanteio, e piscou-lhe o ôlho direito.
Ora eu, que estava ao longe a observar tudo, disse commigo: espera,
que já t'arranjo. E metti a espingarda á cara, fiz pontaria para o ôlho
direito do francez, e...
--E?
--E, truz! metti-lhe a bala no ôlho esquerdo! Errei d'essa vez!
E ainda lhe fulguravam os olhos e o rosto se lhe illuminava, quando
contava d'estas coisas.
Depois proseguiu:
--A final, chegou-me a vez de ser vencido! Eu, que nunca tremi na
guerra, a primeira vez que falei á minha santa, que Deus tenha, dei em
tremer como varas verdes! Mas aquillo sim! Era formosa d'uma vez! O
senhor vê a minha filha! É a cara da mãe.
O capitão não se enganava. A filha era realmente formosa; mas duma
formosura, que é menos dos contornos do rosto, do que da graça
interior da alma.
Havia um anno que era viuva d'um industrial trabalhador, honesto e
intelligente. Ficára a viver na companhia do pae e com dois filhos:--a
Izaura, e o mais pequenino, o Abel, que tinha pouco mais d'um anno e
uma cabecinha loira de cherubim.
Que santa vida a d'aquella familia obscura!
A viuva repartia pelos tres todo o generoso affecto do seu coração; e,
até, como o pae era tão velhinho, quasi que já carecia dos cuidados
d'uma creança. Que os bons velhos, coitadinhos! são faceis de contentar!
Basta-lhes uma restea de sol, uns carinhos de filha e umas historias da
neta!
Quando perguntei ao Macario, porque passeiava depois do jantar,
respondeu-me:
--O somno é bom para a noite. Quando durmo depois de jantar, tenho
sonhos maus.
E, beijando a cabeça de Izaura, accrescentou:
--Quero antes passeiar com a minha neta, que me conta historias muito
lindas.
E continuaram os dois, o velho pelo braço de Izaura, arrastando
vagarosamente os pés nas lagens do passeio.
* * * * *
Depois do jantar, o velho arrastava-se até á poltrona, que tinha ao canto
da janella; e, bem refastellado, com os pés estendidos, as mãos
cruzadas sobre o ventre e a cabeça encostada no espaldar, dormia
patriarchalmente a boa sonata da sésta.
De uma vez, era em julho, e, ás duas horas da tarde, fazia um calor
insupportavel. Até parece que a natureza tambem dormia a sésta! Lá
fóra, no quinteiro, as folhas das arvores pendiam desfallecidas.
Ouvia-se o murmurio monotono da bica d'agua a cahir, como uma
lagrima, sobre uma pia de pedra, debaixo d'uma latada. As portas das
janellas estavam entre-abertas para deixar entrar na sala uma fita de sol,
que se estendia aos pés do velhinho, como uma esteira de luz.
No outro canto da sala, a filha do capitão, sentada n'uma cadeirinha de
pau, pospontava uma camisa de creança, mas tão pequenina, que
parecia uma camisa de boneca! Ouviam-se até uns pequenos estalidos
secos da agulha, atravessando a gomma do morim novo e em folha. O
Abel!... Era um regalo vel-o sentado no chão, em camisa, com as
pernas roliças á mostra, um ventre redondinho de abbade feliz, e os
pésinhos côr de rosa!
Aos pés do avô, na restea do sol, tremia a sombra d'umas folhas do
platano do jardim. A creança engatinhou para lá. Como uma pequenina
féra, atirando-se de golpe sobre a presa, o Abel lançou-se rapidamente
sobre a sombra tremula das folhas; mas--que ludibrio!--ficou triste,
espantado, com os olhos muito abertos, a contemplar a palma da mão
vasia!
Ao lado estavam os grandes pés do avô, mettidos nos dois grandes
chinellos de tapete. Oh! eram duas colinas! E as pernas? As pernas
pareciam dois enormes castellos roqueiros.
No espirito bellicoso da creança surgiu a ideia terrivel de os assaltar.
Fincou as mãositas nos chinellos do avô, levantou-se valentemente nos
pés, e upa! upa! arriba!
N'essa occasião o velho sonhava:
Tinha remoçado cincoenta annos! Os francezes invadiam Portugal!
Quando elle estava na tenda de campanha, a dormir no dia seguinte ao
de uma batalha, viu entrar inesperadamente o exercito de Bonaparte. As
paredes de lôna da tenda iam recuando, recuando, para dar entrada ás
hostes immensas do
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