Claridades do sul | Page 8

António Gomes Leal

sonhado
Um dia, com palacios e riquezas!
Elle deitou-se a um canto; fatigado
D'erguer-se alta manhã, todos os
dias,
Mal voavam as pombas no telhado.
Lá fora, nuvens grossas e sombrias
No pesado horisonte; elle assim
esteve;
--As noites eram asperas e frias.--
Ella cobriu-o d'uma manta leve
Esburacada, velha;--no telhado

Ouvia-se cair, sonora, a neve.
Ella, então, meditou no seu passado;
No seu primeiro beijo; nas
lembranças
Talvez, do seu vestido de noivado.

E nas tardes das eiras; e das danças
Ás estrellas, e aquella vez
primeira
Que a rosa lhe furtou das longas tranças!
E aquella tarde junto da amoreira,
Que trocaram as mãos; e na janella;

E quando olhavam, juntos, a ribeira.
E quando era timida e singella...
..........................................
Lá fóra,
dava o vento nos caixilhos;
Não brilhava no ceu nem uma estrella.
E, áquella hora da noite, por que trilhos
Andariam no mundo--ella
scismava--
Nas miserias, talvez, sem rumo, os filhos!
Elle na manta velha resonava.
*AQUELLE SABIO*
N'aquellas altas janellas
Que deitam para o telhado;
Eu vejo-o
sempre encostado,
A namorar as estrellas.
Tem assim ares d'empyrico
Mui lido em philosophástros;
É um
pobre poeta lyrico,
Que escreve cartas aos astros.
Traz luto nos seus vestidos
Por uma Ophelia de menos,
Tem uns
cabellos compridos,
E uns olhos tristes, serenos.
Parece um Jove proscripto,
E já descrente das Ledas,
Conhece o
hebraico, o sanscrito
E os livros santos dos Vedas.
Espelha na luz do olhar
Não sei que visões amenas;
Anda sempre a
imaginar
Idylios ás açucenas.
E aquella mulher vaidosa
--Que elle chama a sua Egeria--
Ri
d'aquella alma anciosa,
E aquella triste miseria...
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Mais de tres dias ou quatro
Que lhe falta o necessario;
Estava
hontem no theatro
Com luvas côr de canario.
*NA TABERNA*
A João de Deus
Vejo apontar o hynverno...
os crepitantes frios
Me açoutam as
vidraças...
(Francisco Manoel)
Alguns dormem nas mezas, debruçados,
Junto aos restos de um vinho
já bebido;
--Outros contam seus casos desgraçados.--
Um d'elles alto, magro, mal vestido,
Conta historias d'amor, lançando
fumo
D'um cachimbo de gesso ennegrecido.
Um tenta levantar um outro a prumo
Sobre os hombros, e um calvo, e
já vermelho
Faz das suas miserias um resumo.
Depois conta que o pae ethico e velho
Lhe está para morrer; lastima a
vida;
E sobre as vinhas pede um bom conselho.
A casa é escura, velha, ennegrecida
Do fumo. Noute velha, ouve-se o
vento
Bater na antiga porta carcomida.
O frio, a neve, a fome, o mau sustento
Tem quebrantado muito
aquellas frontes,
E em muitos esmagado o pensamento.
N'alguns extinguido, mesmo, as fontes
Da justiça e do bem; e feito
errar
No mundo, como os lobos pelos montes.
E o egoismo dos filhos e do Lar
Banido o dó das lastimas estranhas;

E tornado-os mais frios do que o mar.
Alguns vivem nas neves, nas montanhas,
Outros o rio tem por seu
visinho;
E com a Fome travam más campanhas.

E--todos--tem o ar triste e mesquinho,
Dos que vão sem prazer,
habituados,
Como a um somno que tira maus cuidados,
Beber as suas lagrimas com vinho.
*OS LOBOS*
La neige batait les vitres...
(Gustavo Droz)
Cae lentamente a neve em cima dos telhados.
Tres longos dias crus, terriveis são passados,
Que o rude lavrador
anda por fóra ao vento,
Á neve, ao frio, ao sol, em busca de alimento,

E ainda não voltou. Um dos tres filhos chora;
Rija e sonoramente,
a chuva cae lá fóra.
Quem sabe se virá? Já tem corrido os dias:
Ella pobre mulher, viuva
d'alegrias,
Magra, branca, doente, aspecto macerado,
Ha muito que
presente um caso desgraçado,
O assassinio talvez!... Ha horas
malfadadas,
A miseria é sinistra e extensas as estradas!
Talvez pelo caminho, entre atalhos perdidos,
Na dura escuridão
matassem-n'o os bandidos;
A fome magra e escura a tudo obriga e
atreve!
Talvez de sangue esteja, ainda, tinta a neve!
Elle era bom;--talvez um pouco rude e duro!
Mas é que a vida é triste
e o seu trabalho escuro
Á chuva, ao frio, aos soes, e entre o luar
gelado
Faziam-o cruel; e ás noutes embriagado
Talvez para
esquecer, tinha--sinistro o vinho;
Mas, no entanto era o sol d'aquelle
estreito ninho,
A Alegria, a Força; e a fome macerada
Tinha-a
espancado sempre a sua forte enxada!
Então cheia de dôr, pallida de receio,
Quiz il-o procurar, pegou n'um
filho ao seio,
O mais novo, e accendeu tremendo uma lanterna.

Vinha, ás vezes, no vento uns risos de taberna;
A noute era cruel, a

chuva rija e fria;
Riam-se os pinheiraes, a solidão gemia;
Corriam
tradições de mortes e de roubos;
E ouvia-se, na neve, uivar de fome
os lobos.
Se saisse talvez não encontrasse abrigo!
Os filhos, a chorar, pediam ir comsigo.
Um esfregava o rosto em
prantos e cabellos,
Perto d'um gato esguio envolto entre novellos,
E
outro roto e magro edefinhado, em pranto,
Soluçava e tossia ao
mesmo tempo a um canto.
Ambos elles sem côr, doentes, encovados,
Dormiam pelo chão, nos
asperos sobrados,
Magros, cheios de febre, em farrapos, sombrios,

Sordidos, semi-nús e lividos dos frios,
E a manta esburacada e cheia
de rasgões;
De vez emquando, ao longe, ouviam-se os trovões,
Caia
fina a neve, a chuva terminára,
E como um grande alvor o meigo azul
limpára!--
Ella saiu então; na capa esburacada
Embrulhou bem o
filho e foi-se pela estrada;
Mas, elles, a chorar, quizeram ir com ella,

E como o escuro azul tinha uma clara
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